Dez meses de covid-19

Nos próximos meses não bastará argumentar com a ciência e com os “estudos dos especialistas”. Será necessária arte política. E saber ouvir e ajustar.

O lidar com a pandemia covid-19, na decisão pública, pelos governos e autoridades de saúde, e na decisão privada, todos nós, não tem sido fácil. Tem sido feito com dúvidas, e até erros. Em Portugal e em muitos outros países. Mesmo aqueles países que surgem com melhores resultados na contenção da pandemia e dos seus efeitos tiveram momento de dúvida, hesitações e mudanças de rumo, umas mais ligeiras, outras mais fortes. Daí que a avaliação de como Portugal tem passado, desde março de 2020, por este desafio não seja simples e não deva ser feito apenas por comparação com outros países. Não só as incertezas são muitas como as medidas seguidas têm de responder aos anseios e receios das populações e orientar o caminho coletivo.

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O lidar com a pandemia covid-19, na decisão pública, pelos governos e autoridades de saúde, e na decisão privada, todos nós, não tem sido fácil. Tem sido feito com dúvidas, e até erros. Em Portugal e em muitos outros países. Mesmo aqueles países que surgem com melhores resultados na contenção da pandemia e dos seus efeitos tiveram momento de dúvida, hesitações e mudanças de rumo, umas mais ligeiras, outras mais fortes. Daí que a avaliação de como Portugal tem passado, desde março de 2020, por este desafio não seja simples e não deva ser feito apenas por comparação com outros países. Não só as incertezas são muitas como as medidas seguidas têm de responder aos anseios e receios das populações e orientar o caminho coletivo.

Até ao momento tivemos três fases da pandemia, a que corresponderam outras tantas fases de decisão política, e de sucesso dessas políticas. Cada fase ocorreu em condições diferentes de incerteza, “fadiga política” e “fadiga” geral das pessoas. Na primeira fase, de março a final de maio, houve a primeira “montanha” – grande incerteza, receios muito fortes face à transmissão do vírus e sobre a capacidade do Serviço Nacional de Saúde aguentar. Nesta altura, as políticas públicas seguiram os receios da população – confinamento, quebrar a transmissão do vírus. O Serviço Nacional de Saúde reajustou-se e virou-se rapidamente para os doentes covid-19, com lideranças claras aos vários níveis. A nível de decisão política, informação permanente à população, e demonstração de unidade política – Presidente da República, Governo, partidos políticos com assento parlamentar. A nível de decisão nas várias unidades do Serviço Nacional de Saúde – hospitais, cuidados de saúde primários, unidades de saúde pública – surgiram lideranças locais que aprenderam e prepararam. O tempo das decisões públicas acompanhou o “sentir” da sociedade – até mesmo a saída da situação de confinamento ocorreu num momento em que as pessoas, em tempo de Páscoa, começaram a praticar maior mobilidade (atendendo aos dados disponibilizados publicamente, em termos agregados, pela Google). Foi um período de sucesso.

Seguiu-se a segunda fase, que, pedindo emprestado o termo, foi de “planalto”, novos casos, e depois os internamentos e óbitos, a crescerem devagar primeiro, a decrescer depois. Coincidiu largamente com o Verão, de junho à terceira/quarta semana de agosto. Tempo de políticas públicas mais suaves, maior atenção às consequências para a atividade económica. Tempo de alguma descompressão na própria população, em período normalmente de férias. Foi uma segunda fase de políticas públicas com sucesso médio, não se conseguiu evitar o “planalto”. Foi também um período onde a comunicação oficial começou a lidar com o duplo plano, o da comunicação puramente técnica, voltada para a saúde, e o da comunicação política, onde as implicações para a situação económica e condições de vida de partes da população passaram a estar mais presentes na decisão pública. Também no campo político se fazem sentir as primeiras diferenças importantes entre o Governo e os partidos políticos. Foi um tempo onde foram surgindo avisos e preocupações com o que poderia ser o chegar do Outono e depois do Inverno.

A terceira fase começa em final de agosto e está ainda em curso. Tem sido bastante diferente das anteriores. As decisões privadas, de todos nós, coletivamente, levaram uma subida dos contágios, devagar ainda em setembro, com grande aceleração em outubro e depois novembro. As decisões públicas, em vez de andarem à frente da pandemia, atrasaram-se e foram muito mais reativas do que em antecipação. Infelizmente, foi uma característica europeia geral, numa espécie de contágio de atraso das decisões públicas. Quando se decidiu intervir não só os contágios estavam mais disseminados, em mais locais, como se encontrou uma fadiga das pessoas, e o sentir crescente de dificuldades económicas. Também os decisores políticos aparentaram uma “fadiga política”, traduzida numa comunicação menos incisiva, numa liderança menos clara. Durante outubro e novembro, as atenções estiveram mais voltadas para o Orçamento do Estado. E agora prepara-se a presidência portuguesa da União Europeia. Esta terceira fase teve mais fracassos do que sucessos em termos de decisão das entidades públicas. O Plano da Saúde para o Outono-Inverno apareceu em setembro, apontando caminhos em geral corretos mas vagos. Não foram caminhados de forma clara e assertiva. O Plano de Vacinação covid-19 deveria ter surgido em setembro ou outubro, mas apareceu apenas a poucas semanas da disponibilização da vacina, em dezembro. A disponibilização de “mapas de risco”, com base na situação de cada concelho, aconteceu a “saca-rolhas”. É um instrumento de informação para a população que deveria ter sido usado mais cedo (houve quem o sugerisse ainda antes do Verão). As equipas de saúde pública para seguimento de contactos demoraram a ser reforçadas, tendo-se apostado numa app que até agora não tem tido papel de relevo (aliás, desapareceu de qualquer atenção pública nos últimos tempos).

O futuro próximo está baseado na esperança da vacinação permitir retomar muita da normalidade social e económica, mas não acontecerá provavelmente antes do Verão de 2021. E essa esperança só se concretizará se as pessoas realmente se vacinarem. A hesitação quanto às novas vacinas é maior do que habitual, em Portugal e noutros países europeus. Os vários inquéritos à população feitos ao longo dos últimos meses não encontram oposição forte às vacinas por parte da população portuguesa, mas encontram uma hesitação grande, e que cresceu desde março a dezembro. Significa que as decisões políticas nos próximos meses vão precisar de ser bem sucedidas em três campos diferentes: garantir que as pessoas se vacinam, convencer as pessoas a manter hábitos que minimizem contágios por vários meses mais, e assegurar que o Serviço Nacional de Saúde (o sistema de saúde português numa visão mais abrangente) tem capacidade de responder às necessidades de quem reside em Portugal, seja problemas relacionados com covid-19 ou outros problemas de saúde. O sucesso dos dois primeiros aspetos exige uma comunicação muito bem construída. E aqui a grande dificuldade para a decisão pública está em saber ouvir, saber sentir como essa comunicação é recebida, e como as pessoas ajustam, ou não, o seu comportamento. Não bastará argumentar com a ciência e com os “estudos dos especialistas”. Será necessária arte política. E saber ouvir e ajustar. Ao mesmo tempo que internacionalmente será dedicado tempo à presidência portuguesa da União Europeia. A capacidade política determinará o sucesso que teremos em fazer esta (talvez) última fase da pandemia. E passada, esperança de todos nós, a crise da saúde, teremos de enfrentar as consequências económicas deste ano de 2020.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico