“Chegámos a ter pessoas que já não tinham como pôr um prato de sopa na mesa”
David Santos, técnico de luz de 45 anos, é um dos muitos trabalhadores da cultura desempregados na sequência da pandemia. Desde Agosto que se dedica à União Audiovisual, grupo de entreajuda que apoia os profissionais do sector da cultura. Actualmente distribuem 250 cabazes de alimentos por mês. “Eu próprio já tive de recorrer à ajuda da União. Não tenho vergonha de o dizer.” Testemunho na primeira pessoa.
Como para toda a gente, as coisas aconteceram muito de repente. Eu estava como responsável, em Portugal, de uma empresa multinacional de audiovisuais, aluguer de equipamentos e produção de eventos que tinha aberto um escritório em Lisboa em 2018. 2019 foi um ano muito bom porque consegui fomentar o negócio cá, a empresa estava a crescer. Em Março, no início da pandemia, a empresa não fechou logo. Mas a partir daí começaram a surgir os cancelamentos. Entre Março e Maio não consegui gerar negócio. Eu ia na mesma para o escritório todos os dias, apesar de não termos trabalho. Falava com os nossos parceiros e fornecedores, e todos eles diziam o mesmo, que a coisa ia parar. Em Maio, a empresa decidiu encerrar todos os escritórios que tinham aberto, inclusive o de Portugal. Ou seja, a partir de Maio fiquei sem emprego.
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Como para toda a gente, as coisas aconteceram muito de repente. Eu estava como responsável, em Portugal, de uma empresa multinacional de audiovisuais, aluguer de equipamentos e produção de eventos que tinha aberto um escritório em Lisboa em 2018. 2019 foi um ano muito bom porque consegui fomentar o negócio cá, a empresa estava a crescer. Em Março, no início da pandemia, a empresa não fechou logo. Mas a partir daí começaram a surgir os cancelamentos. Entre Março e Maio não consegui gerar negócio. Eu ia na mesma para o escritório todos os dias, apesar de não termos trabalho. Falava com os nossos parceiros e fornecedores, e todos eles diziam o mesmo, que a coisa ia parar. Em Maio, a empresa decidiu encerrar todos os escritórios que tinham aberto, inclusive o de Portugal. Ou seja, a partir de Maio fiquei sem emprego.
Quando tudo fechou, quando todos os eventos, concertos e festivais foram cancelados, previu-se o pior e confirmou-se. Com a empresa aberta contratávamos muitos freelancers. Todas as pessoas que colaboravam comigo ficaram sem trabalho, aquele primeiro confinamento foi o suficiente – como esta área é sustentada por pessoal a recibos verdes, não podemos parar nenhum mês. Felizmente, eu não estava a recibos verdes. Era a única pessoa nessa situação.
Quando fui para casa, comecei a dedicar-me à carpintaria. A minha primeira reacção foi tentar manter-me ocupado, não parar. Tentei fazer com que a semana de segunda a sexta fosse uma jornada de trabalho. Continuei a investigar coisas da minha área, mas chegou uma altura em que isso já era muito pouco. Eu chegava a ter jornadas de trabalho de 12 horas seguidas. Pessoas habituadas a isso não conseguem parar de um momento para o outro. Sim, de certa forma andava a iludir-me. A gente entra nesse limbo: “isto vai melhorar, vamos esperar”. Eu não quero mesmo sair desta área. Eu era um daqueles lucky guys que acordava de manhã e ia trabalhar com gosto.
A ficha caiu-me quando comecei a prestar mais atenção às acções da União Audiovisual. Foi um movimento que cresceu muito rapidamente. Passou a haver muita gente interessada em ajudar e muita gente a precisar de ajuda. Como já disse, a maioria das pessoas desta área trabalha a recibos verdes, portanto ao fim de dois meses quem fica sem trabalho começa a ter dificuldades. Eu naquela altura inicial aguentei porque a empresa deu-me uma indemnização, e é disso que estou a viver agora. Mas essa indemnização vai acabar em breve. Não chega para tudo. Eu próprio já tive de recorrer à ajuda da União. Não tenho vergonha de o dizer.
Entrei para a União Audiovisual em Agosto. Comecei por me voluntariar para as recolhas de alimentos, em vários pontos de Lisboa. Em finais de Setembro comecei também a fazer cabazes e, neste momento, pertenço ao núcleo duro do grupo. O nosso dia-a-dia passa por receber bens alimentares e fazer recolhas nos pontos fixos que temos em Lisboa – estou a falar da célula à qual pertenço, mas a União conta com quase 20 pontos fixos de recolha de bens alimentares em todo o país: Porto, Coimbra, Leiria, Alentejo, Algarve… Depois, duas vezes por mês reunimo-nos no nosso armazém para organizar a entrega dos cabazes.
A União Audiovisual está muito feliz com a reacção do sector artístico, da sociedade civil e do meio empresarial. Temos recebido cada vez mais apoios, de dentro e de fora da cultura. Em Lisboa, algumas das instituições culturais que nos têm ajudado com a recolha de bens são o Village Underground, o Cinema São Jorge, o Teatro Tivoli, o Teatro do Bairro Alto, o Teatro Maria Matos, entre outros. Qualquer pessoa que vá assistir a um espectáculo nesses locais pode levar consigo bens não perecíveis. Temos também várias empresas que são nossas parceiras. O Continente, por exemplo, que neste momento está a fazer uma campanha de apoio, com publicidade nas televisões e nas rádios.
Tivemos ainda a ajuda da iniciativa Rock ‘n’ Law. Uma vez por ano, advogados de diferentes escritórios formam bandas de rock e fazem um espectáculo em que angariam fundos para apoiar projectos de solidariedade social. Este ano decidiram atribuir os donativos recebidos à União Audiovisual. É importante mencionar também o restaurante Solar dos Presuntos, que nos doou dez por cento das receitas do serviço de entrega ao domicílio e do take away durante duas semanas, e a Uncancell Collection, cujas receitas da venda online de merchandising de eventos cancelados em 2020 reverteram a favor da União Audiovisual. O dinheiro que nós recebemos é convertido em bens alimentares. Nós somos uma organização sem fins lucrativos que se dedica especificamente à distribuição de bens alimentares.
A União começou por entregar vinte, trinta cabazes a nível nacional. Actualmente vamos nos 250 por mês. Em Lisboa é onde entregamos mais, cerca de metade, tanto a pessoas individuais como a famílias. Além dos técnicos de som, de luz e de vídeo também apoiamos artistas, maquilhadores, produtores, road managers, runners, riggers, as pessoas que fazem os caterings dos festivais… No início, este movimento era, sem dúvida, para os técnicos, porque foram eles que o formaram. Mas entretanto abrimos o leque a toda a gente que trabalha na cultura. Nós chegámos a ter pessoas que já não tinham como pôr um prato de sopa na mesa. A nossa vontade em continuar a fazer o que fazemos é não permitir que isso aconteça. Não permitir que ninguém bata no fundo, que ninguém fique para trás, que ninguém fique sem comida para pôr na mesa. Estamos a conseguir e é isso que nos dá força. A experiência está a ser tão boa que, no futuro, queremos ir além da entrega de bens essenciais. Queremos ir um pouco mais longe. São projectos que estão em desenvolvimento, não quero desvendar já muita coisa, mas um dos objectivos é tentar garantir que numa próxima crise não voltemos a passar por tantas necessidades e que não estejamos tão desprotegidos.
Eu acredito que a sociedade civil começa a ter um princípio de noção de que não são só os artistas que fazem a cultura. Daí também o grande apoio que estamos a receber. Ao princípio sentíamo-nos um pouco invisíveis, mas nós não culpamos as pessoas por não nos conhecerem: afinal, a nossa função é trabalhar nos bastidores. Com esta crise fomos empurrados a dizer “nós existimos”, “somos nós que estamos por trás desta gente toda”. Nós estamos a receber esse reconhecimento dos próprios artistas. O que esta crise está a trazer de positivo é unir uma área que dantes não era unida. Ainda não estamos como devíamos estar, mas sem dúvida que a entreajuda e a solidariedade nos uniram mais.
Texto escrito a partir de uma conversa com David Santos