“Netflixizaram-se” os videojogos. Ainda bem
O mercado digital não eliminou a venda a retalho, mas obrigou-a a transformar-se. Na luta dos gigantes dos videojogos com os seus serviços de subscrição, quem vence são os jogadores.
É um lugar-comum dizer-se que a forma como consumimos conteúdos mudou nas últimas décadas. Basta olharmos para os videojogos, como estes progrediram entre as cópias legais e as franjas da pirataria na primeira metade dos anos 1990, com cassetes copiadas de jogos de ZX Spectrum a serem vendidas em lojas, ou cartuchos do que achávamos serem cópias legítimas da Nintendo Entertainment System, mas que eram apenas parte do sistema de contrafacção que conhecemos hoje como “famiclones”. De forma consciente ou inconsciente, o consumo foi sendo toldado nessa época pela ingenuidade e pela falta de regulamentação, com estas vendas de produtos que hoje sabemos serem ilegais a serem assumidas às claras.
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É um lugar-comum dizer-se que a forma como consumimos conteúdos mudou nas últimas décadas. Basta olharmos para os videojogos, como estes progrediram entre as cópias legais e as franjas da pirataria na primeira metade dos anos 1990, com cassetes copiadas de jogos de ZX Spectrum a serem vendidas em lojas, ou cartuchos do que achávamos serem cópias legítimas da Nintendo Entertainment System, mas que eram apenas parte do sistema de contrafacção que conhecemos hoje como “famiclones”. De forma consciente ou inconsciente, o consumo foi sendo toldado nessa época pela ingenuidade e pela falta de regulamentação, com estas vendas de produtos que hoje sabemos serem ilegais a serem assumidas às claras.
Para esta situação contribuiu bastante o baixo poder de compra em Portugal. Houve uma proximidade muito grande do valor de referência no nosso país de um Game Boy ou uma NES — que custavam, respectiva e aproximadamente 21 e 25 contos — com o do salário mínimo nacional à época. Hoje, quase 30 anos depois, uma consola como a Nintendo Switch já corresponde a menos de metade do salário mínimo e o quase congelamento da progressão do valor dos jogos ao longo das décadas permitiu, com a inflação, facilitar o seu acesso.
A revolução digital
Seria apenas na mudança de século que Gabe Newell, presidente da produtora de videojogos Valve, mudaria o paradigma da venda dos jogos, promovendo uma visão que a maioria das grandes companhias desdenhou até terem de se render aos sinais dos tempos. Newell e a sua equipa desenvolveram o Steam inicialmente como plataforma para albergar os seus jogos, que permitisse, graças à massificação da banda larga, disponibilizar actualizações automáticas aos seus produtos, para além de incorporar sistemas anti-pirataria e anti-batota.
Mas para a Valve o Steam poderia ser mais: a plataforma tinha espaço para se assumir como a primeira verdadeira loja de jogos digitais. Convencer as grandes editoras foi uma tarefa difícil, uma vez que estas não só não acreditavam na disponibilidade do público em abraçar as compras de videojogos em formato digital, como não queriam ceder parte das vendas à Valve.
A evolução do mercado acabaria por dar razão a Newell, justificando o porquê de 15 anos volvidos do início de actividade do Steam a plataforma ter cerca de 75% do mercado global de videojogos para PC. Uma hegemonia que só recentemente foi ameaçada pela entrada em cena da loja digital da Epic, a gigante detentora do fenómeno Fortnite, que tem investido largos milhões em jogos gratuitos e outros tantos milhões em exclusivos temporários.
O Steam, que abriu portas com apenas sete títulos, acabou 2019 com mais de 30 mil à venda, com todos os grandes players do mercado a disponibilizar jogos na plataforma — incluindo colossos como a Microsoft, Ubisoft e Electronic Arts (EA) que possuem lojas digitais próprias, mas que são apenas uma mera gota no oceano do mercado dominado pela Valve.
Na evolução do consumo de videojogos quase podemos separar as décadas pela acessibilidade que o público teve aos títulos lançados, entre a pirataria muitas vezes semiconsciente dos anos 1990 e a progressiva “erosão” das cópias piratas combatidas naturalmente pela transformação digital levada a cabo nos 2000. A possibilidade de prescindir de intermediários retalhistas físicos permitiu às empresas implementar descontos consideráveis nos jogos, que conviveram de forma pacífica com as formas físicas à venda nas lojas. A terceira transformação, aquela que vivemos hoje, deu-se nos últimos anos.
A era dos serviços de subscrição
Da mesma forma como a Netflix foi originalmente apresentada à Blockbuster que, para infelicidade sua, recusou o negócio, algumas das grandes companhias de videojogos perceberam a perda de timing que tiveram perante o sentido de oportunismo da Valve. Mas no caso da Netflix a influência vai mais longe, como todos sabemos.
O serviço enraizou-se nos hábitos de consumo de conteúdos e, se outrora um serviço de subscrição era olhado de soslaio, a Netflix veio provar que pode ser uma oportunidade compensatória para o consumidor. A fidelidade de uma mensalidade é alimentada com a constante adição de conteúdos, na tentativa de manter a relação entre subscritor e serviço o mais interligada possível.
A aplicação deste modelo de negócio aos videojogos acabaria por ter um ligeiro atraso em comparação com o cinema ou mesmo com a música. A venda de videojogos continua a representar um valor demasiado interessante para que muitas companhias queiram abdicar desses largos milhões de facturação. O que não significa, porém, que não existam abordagens diferentes de criar serviços de subscrição dentro das marcas de videojogos.
Há pelo menos sete serviços principais de subscrição de conteúdos nos videojogos, que vão do mercado de PC/Mac, às consolas e aos dispositivos móveis. Mercados díspares com gigantes diferentes, o que potenciou abordagens distintas aos “formatos” destes serviços.
As três grandes da indústria — Sony, Microsoft e Nintendo — têm cada uma um serviço diferente. Os serviços da PlayStation e da Xbox são demasiado complexos e díspares entre si, merecendo uma análise em separado, mas no caso da Nintendo o serviço corresponde na perfeição às expectativas da companhia dentro da sua grande comunidade de jogadores.
Mais do que um serviço de subscrição de conteúdos, o Nintendo Switch Online é o pagamento mensal (ou anual) das funcionalidades online da Switch. Os jogos “retro” de NES e SNES que a companhia disponibiliza, todos com mais de duas décadas de idade, são apenas um complemento do serviço e não o seu núcleo. Ao contrário das suas concorrentes, a Nintendo não disponibiliza jogos recentes na subscrição pela simples razão que não precisa de o fazer. A fidelização da comunidade de jogadores é tão profunda que a companhia sabe que é mais compensatório o relançamento ou remasterização de títulos do seu passado vendidos em retalho físico ou digital ao preço de um jogo dos dias de hoje, do que simplesmente garantir o acesso gratuito através de um serviço similar aos restantes.
A multiplicação das subscrições
O mercado das subscrições é tão apetecível que outras duas gigantes da indústria, a Ubisoft e a EA, acabariam nos últimos anos por desenvolver plataformas semelhantes no PC, garantindo aos subscritores um acesso integral em dia de lançamento dos grandes títulos. É óbvio que existem limitações claras quando comparamos o catálogo disponível destas duas companhias multiplataformas ou os serviços da Sony e da Microsoft. Tanto a Ubisoft como a EA sabem que os serviços são um complemento ao seu core business, e que o facto de estarem a disponibilizar os títulos de imediato num serviço de subscrição não afecta o seu verdadeiro mercado: a venda de títulos nas consolas.
As duas grandes marcas do mercado mobile decidiram igualmente (e sem surpresa) enveredar por este caminho: a Apple com o Arcade, e a Google com o Play Pass. Ambas perceberam que existe um mercado gigante nos respectivos ecossistemas e decidiram ter parte activa do negócio, com subscrições à volta de 4,99€ mensais.
Muitos fatalistas da indústria vêem com receio esta “netflixização” do mercado, ignorando os pontos principais que os serviços têm trazido. Começando com uma verdadeira democratização do acesso do público a videojogos, entre os grandes blockbusters e os mais criativos “indies”. Qualquer uma das subscrições “principais” tem novo conteúdo adicionado aos catálogos para manter elevado o famigerado rácio de investimento financeiro versus tempo de conteúdo disponibilizado.
Por outro lado, os serviços não eliminam a venda a retalho. Uma subscrição é um afunilamento dos interesses de um segmento dos consumidores, deixando uma grande franja do mercado a preferir não ter qualquer compromisso com uma companhia em detrimento de outra. Um grande bloco de jogadores continua a preferir comprar as cópias de jogos, seja física ou digitalmente, do que pagar mensalmente pelo direito de aceder a esse mesmo conteúdo.
O mercado digital não eliminou a venda a retalho, mas obrigou-a a transformar-se. O mercado dos free-to-play não acabou com a compra de títulos. Os serviços de subscrição não vão terminar com a venda de videojogos, mas estão a transfigurar a comunicação e a postura do mercado e dos jogadores. Numa indústria em franca expansão ano após ano, as subscrições vêm abrir novos acessos e novas relações, com a competição das grandes companhias a estenderem-se para aí, e serem inclusivamente argumentos na mudança de geração de consolas que vivemos hoje com o lançamento da PS5 e Xbox Series X/S.
Terminando como começámos, com um lugar-comum: nesta luta dos gigantes dos videojogos com os serviços de subscrição, quem vence são mesmo os jogadores.