“Maria” tem 17 anos e esteve infectada por duas estirpes de SARS-CoV-2 ao mesmo tempo

Investigadores do Porto analisaram caso de uma adolescente que terá sido infectada por duas estirpes diferentes do vírus SARS-CoV-2 na mesma altura e que teve resultados positivos nos testes durante 97 dias. Não há nenhuma publicação científica conhecida que relate um caso idêntico.

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NIAID

A equipa de cientistas e médicos que analisou o raro caso de uma jovem portuguesa de 17 anos que foi infectada por duas estirpes de SARS-CoV-2 ao mesmo tempo não sabe bem como classificar esta situação inédita. “Pode ser uma reinfecção, uma sobre-infecção ou uma co-infecção”, diz a infecciologista Margarida Tavares, do Hospital de S. João, no Porto. Tenha sido vítima de duas infecções simultaneamente ou uma imediatamente a seguir à outra, a doente foi infectada duas vezes por duas estirpes distintas do novo coronavírus. “Seja como for, co-infecção ou reinfecção – tendo em conta a possibilidade de que a imunidade impulsionada por uma estirpe específica do SARS-CoV-2 não protege contra outra estirpe, mas pode, em vez disso, conduzir a um padrão de doença mais grave –, é de extrema relevância na saúde pública”, concluem os investigadores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto numa pré-publicação do artigo divulgado na plataforma medRxiv.

Foram os médicos do Hospital de S. João que trataram a jovem com uma primeira infecção e a viram regressar ao internamento do hospital ainda doente que suspeitaram que este caso poderia ser invulgar. Tinham razão. A adolescente de 17 anos da região do Porto que foi tratada no hospital do Porto será um caso raro. Para já, o caso estudado pela equipa de investigadores I3S é um caso único na literatura científica. As conclusões das análises e sequenciação do vírus (neste caso, das duas estirpes de linhagens distintas) são descritas num artigo que está a ser revisto para publicação, mas já se encontram na plataforma medRxiv.

Há já vários casos reportados de suspeita de reinfecção por SARS-CoV-2 em todo o mundo. No entanto, são muito menos aqueles que foram comprovados molecularmente. Ou seja, entre as muitas suspeitas existem poucos casos confirmados com a sequenciação genética do vírus que é a única maneira de comprovar que uma determinada pessoa esteve infectada pelo mesmo vírus (ainda que de estirpes diferentes) em dois momentos distintos. Desta pequena amostra, todos os que são do conhecimento público relatam situações em que o doente foi infectado, recuperou e depois terá sido infectado de novo. Entre outras frentes de trabalho, os investigadores do I3S também têm casos destes em mãos e até relativamente recentes.

No entanto, o caso estudado pelo I3S que é relatado na pré-publicação agora divulgado é diferente de todos os outros casos de reinfecção reportados até agora. A doente, uma adolescente de 17 anos que reside na região Norte do país, esteve infectada (com resultados positivos nos testes) durante 97 dias e num determinado momento teve as duas estirpes presentes no organismo, sendo que a infecção evoluiu e a estirpe que inicialmente estava menos presente acabou por se tornar dominante e substituir a outra.

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Amostras nasofaríngeas da paciente de 17 anos com resultados negativos para o SARS-CoV-2 (a vermelho, o núcleo das células) I3S

O caso já tem vários meses mas só agora foi conhecido. Maria, chamemos-lhe assim, terá sido infectada pelo SARS-CoV-2 logo no início da pandemia. Em Março, a adolescente chega ao Hospital de S. João e desperta de imediato a atenção dos médicos desde logo por se tratar de uma jovem saudável que se apresenta com uma forma grave da doença. Não era comum uma jovem de 17 anos, saudável, sem co-morbilidades, necessitar de cuidados intensivos.

Mas houve mais particularidades. Cerca de dois meses após o diagnóstico da infecção e já numa fase de convalescença, a jovem “teve recorrência de sintomas”, lembra a médica Margarida Tavares em declarações ao PÚBLICO. “Na altura em que isto aconteceu era necessário que tivesse dois testes negativos para ser considerada recuperada e, como isso não tinha acontecido até essa altura, ela mantinha-se na nossa consulta”, acrescenta a infecciologista. O artigo sobre o caso refere que a doente fez um total de 19 testes PCR.

Assim, de novo com sintomas, ainda que mais ligeiros do que os que teve no início da infecção, Maria reaparece no hospital com algumas dificuldades respiratórias e um “pico de febre”. Porém, desta vez, os sintomas eram mais leves, passaram rapidamente e a doente “recuperou muito bem”. Ainda assim, se já antes tinha despertado a atenção dos médicos, com esta inesperada recaída de sintomas após algum tempo assintomática o interesse no seu caso aumentava e foram novamente recolhidas amostras para análise.

“Nessa altura, já tínhamos começado a estudar as pessoas que tinham um curso de doença mais prolongado e, por isso, estudámos esta doente a vários níveis, para perceber se produzia anticorpos, se tinha uma imunidade celular aparentemente normal, entre outros aspectos. Continuámos sempre a seguir esta jovem porque ela nunca mais negativava”, conta a médica.

Além de se tratar do único caso conhecido até agora de uma doente que esteve infectada com duas estirpes ao mesmo tempo, o caso de “Maria” também tem uma especial importância porque inclui uma série de estudos genéticos das amostras. Entre outras questões, os resultados das análises feitas comprovam que num determinado momento a adolescente tinha uma determinada linhagem do vírus, nove dias depois aparece outra linhagem do mesmo vírus mas numa frequência ainda reduzida (pouco presente) e dois meses mais tarde a segunda linhagem era já dominante e tinha substituído completamente a primeira.

Quando Maria apareceu com a recaída de sintomas, os médicos colocaram a hipótese de reinfecção. No entanto, a adolescente tinha estado sempre confinada, em isolamento domiciliário. Outras das hipóteses em cima da mesa era que o reaparecimento dos sintomas fosse causado por um “novo despertar” do mesmo vírus que voltava a causar doença. “Não sabíamos o que estava a acontecer. Fomos sequenciar as amostras que foram usadas para os testes de PCR e realmente encontrámos estas duas estirpes”, diz Margarida Tavares.

“Os dois estavam lá desde o início”?

Mesmo depois dos resultados da sequenciação genética, a médica revela que ainda não há certezas absolutas sobre o que aconteceu nem detalhes sobre os mecanismos que estão por trás deste caso. O leque de possibilidades é amplo: “Podemos ter aqui ou co-infecção ou sobre-infecção ou reinfecção. Veja: nós temos aqui alguém que adquiriu ao mesmo tempo mais do que uma estirpe do vírus, portanto temos uma co-infecção, podemos ter um primeiro vírus e depois adquirir imediatamente a seguir um novo vírus em cima desse vírus e aí temos um sobre-infecção. Ou então temos aquilo que se tem falado muito na literatura e que são os casos que conhecíamos agora que são as reinfecções, ou seja, um doente que é infectado, recupera e depois é novamente infectado.”

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Amostras nasofaríngeas de doente com resultados positivos que serviu de controlo no estudo da paciente de 17 anos (a verde, anticorpos contra a proteína da espícula do vírus, e a vermelho o núcleo das células) I3S

As análises provam que, em determinado momento, as duas estirpes do vírus estavam presentes. Sobram, no entanto, muitas dúvidas. Não se sabe, por exemplo, se Maria produziu anticorpos logo no início da infecção. “Não temos nenhuma avaliação serológica, isto foi cedo e não se faziam testes serológicos”, refere Margarida Tavares. Há muita coisa em aberto. “Podemos até admitir que esse vírus se tornou predominante porque ela não foi capaz de produzir anticorpos, não sabemos. Só sabemos que pouquíssimo tempo depois da recorrência de sintomas ela já tinha anticorpos. Nessa altura, já vimos isso”, explica. E em Outubro, nos últimos testes realizados, Maria ainda mantinha anticorpos no seu organismo.

“O episódio que levou à segunda hospitalização pode ser especulado como correspondendo ao momento em que a estirpe 20B se tornou dominante. Infelizmente, não dispomos de amostras deste período que nos permitam confirmar esta especulação. É um facto que a carga viral era mais elevada (10-25vezes) nas amostras após este episódio em comparação com as da data da primeira alta”, lê-se no artigo na medRxiv, que conclui que, “ainda assim, não foram encontradas quaisquer provas in vitro que indiquem que o doente estava contagioso neste período”.

Margarida Tavares lembra ainda que as duas estirpes de vírus que infectaram a adolescente estão a circular entre nós e, por isso, se os anticorpos de uma estirpe não servissem para outra teríamos um número muito mais elevado de reinfecções. Então o que aconteceu com Maria? “A nossa hipótese é que os dois vírus estavam lá desde o início. Ela adquiriu os dois simultaneamente logo no início ou muito precocemente um logo a seguir ao outro”, arrisca Margarida Tavares, que nota que as análises às amostras do primeiro teste PCR já mostram a presença dos dois vírus, ainda que um estivesse ainda muito pouco presente e que depois veio a tornar-se dominante.

Falta saber o que esta co-infecção ou sobre-infecção significa e se haverá mais pessoas com o mesmo historial de Maria. “Não sabemos. O que colocamos como hipótese exploratória é que a presença destes dois vírus tão cedo no curso da infecção possa ter condicionado uma apresentação mais grave da doença, possa explicar a recorrência dos sintomas e possa ter condicionado uma tão longa expressão do vírus que fez com que tivesse persistentemente testes positivos”, responde a infecciologista. O artigo diz isso mesmo: “Todas as provas parecem indicar que a co-infecção precoce por duas estirpes SARS-CoV-2 foi a causa da doença grave manifestada por esta jovem saudável.”

Impacto na vacina?

Sobre o possível impacto que esta possibilidade de sobre-infecção ou co-infecção pode ter na eficácia da vacina, também não há respostas. A vacina poderá levar à produção de anticorpos que nos protegem da infecção de algumas estirpes do vírus e outras nem tanto. “Por exemplo, tem-se discutido agora se esta nova variante inglesa terá um impacto na vacina. Diz-se que não mas na verdade ainda não sabemos, não sabemos até que ponto é que essas mutações no vírus produzem uma proteína que é reconhecida de forma diferente pelos anticorpos que a vacina induz”, diz Margarida Tavares.

Luísa Pereira é também muito cautelosa e parece mesmo menos optimista. “Pois. O que estávamos agora a precisar era de uma esperança, não é?”, desabafa a geneticista do I3S, sem disfarçar o desalento. Após uma pausa para escolher as palavras, a geneticista sublinha que todo conhecimento que vamos acumulando sobre o vírus é útil e admite que o caso relatado no artigo sobre esta dupla infecção da adolescente portuguesa é suficiente para “levantar algumas preocupações” sobre a eficácia da vacina. “Este caso reforça que é realmente urgente continuar a estudar estas situações especiais porque há factores que ainda não conseguimos entender para a heterogeneidade tão elevada de sintomas e manifestações da doença. Esta é, de facto, uma doença muito complexa”, diz.

As mutações que o SARS-CoV-2 já teve e vai continuar a ter não são novidade e muitas delas não terão qualquer interferência para a eficácia da vacina. Outras, se calhar, podem ter, mas a vacina também poderá ser adaptada, segundo já admitiram os responsáveis pelo desenvolvimento e fabrico desta defesa. Aliás, dentro do organismo de uma pessoa infectada podem ocorrer algumas mutações do vírus. No entanto, as variações que possam ser detectadas num indivíduo não são suficientes para considerar que estamos perante duas estirpes de duas linhagens distintas do vírus, esclarece a investigadora do I3S. Maria tinha duas linhagens bastante distintas, separadas por muitas mutações, ou seja, uma longa infecção e dois vírus.

A geneticista diz ainda ao PÚBLICO que, além dos testes realizados às amostras da adolescente, a equipa de cientistas recorreu a uma base de dados genética internacional que já conseguiu identificar algumas das variantes genéticas na população que podem estar associadas a uma maior susceptibilidade para a infecção por SARS-CoV-2 e doença severa de covid-19. Os dados foram também comparados com uma amostra de 200 indivíduos da população portuguesa e a conclusão foi que a adolescente não “tem risco agravado genético de ser susceptível à covid-19”. “Isso torna mais provável que tenha sido a co-infecção que contribui para a gravidade e a duração prolongada da doença”, diz Luísa Pereira. O caso de Maria pode ser um caso isolado, mas também pode não ser.

A boa notícia é que a adolescente portuguesa que passou por esta situação inédita com testes positivos durante três longos meses está bem. “Ela hoje está óptima. Perfeitamente assintomática e não ficou com sequelas nenhumas. Uma recuperação ad integrum [de volta à condição anterior]”, assegura Margarida Tavares.