Ir à raiz: mais políticas sociais, menos violência policial
O bárbaro assassinato de Ihor Homenyuk e seu encobrimento por diversas instituições, assim como tantos outros casos de violência policial, exigem que sejam feitas mudanças estruturais. O combate à sistemática violência de Estado sobre as populações imigrantes, racializadas e pobres faz-se indo à raiz do problema.
O assassinato de Ihor Homenyuk – morto de forma brutal no Aeroporto de Lisboa às mãos do SEF –, o caso da esquadra de Alfragide e outros estão a provocar um debate público importante, mas tardio, sobre a relação das forças policiais com as comunidades imigrantes, racializadas e pobres.
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O assassinato de Ihor Homenyuk – morto de forma brutal no Aeroporto de Lisboa às mãos do SEF –, o caso da esquadra de Alfragide e outros estão a provocar um debate público importante, mas tardio, sobre a relação das forças policiais com as comunidades imigrantes, racializadas e pobres.
A forma como o Presidente da República, o primeiro-ministro, o ministro da Administração Interna e a diretora nacional do SEF (des)trataram este caso durante meses revela a dificuldade das instituições em encarar os problemas que existem nas suas estruturas. Referimo-nos à violência policial, racismo institucional, xenofobia, impunidade de agentes e infiltração da extrema-direita, para os quais inúmeros relatórios internacionais têm, ao longo dos anos, vindo a chamar à atenção. Este ano foram condenados vários dos agentes envolvidos no caso da esquadra de Alfragide, no entanto, apenas um foi sentenciado com pena de prisão efetiva. Vimos também como a PSP de Bragança desprezou o bárbaro assassinato de Giovani Rodrigues, situação que só foi emendada quando o caso ganhou visibilidade pública. E, se não fossem as filmagens colocadas nas redes sociais, nada saberíamos sobre as agressões contra Cláudia Simões e membros da família Coxi, no Bairro da Jamaica. Em relação ao SEF, continuam a vir mais casos ao de cima, não pela inspeção do Estado, mas pela denúncia de imigrantes, ativistas, advogados e jornalistas.
Estas e outras situações não são casos isolados de maus polícias, de debilidades organizacionais, de chefias incompetentes ou arquiteturas institucionais inadequadas. Embora seja necessário apurar, de forma consequente, as responsabilidades, a relação das forças policiais com comunidades racializadas, imigrantes e pobres é estruturalmente problemática. Note-se que entre a população reclusa são sete vezes mais as pessoas que não sabem ler e/ou escrever (7% para 1%) (2019). Lembremo-nos também que os cidadãos com nacionalidade dos PALOP estão dez vezes mais sujeitos ao encarceramento e têm penas mais longas para o mesmo tipo de ilícito. Isto é amplamente conhecido por quem trabalha estas questões ou por quem as vive na pele. No fundo, o aparelho policial do Estado tem servido para “vigiar e punir” as pessoas marginalizadas e sobre-exploradas das sociedades capitalistas pós-coloniais.
Os problemas estruturais desta relação não se resolvem apenas ou principalmente com um “botão de emergência”; mais formação em direitos humanos; com “body cams” e videovigilância nos carros-patrulha e esquadras; com a ocultação das marcas do racismo nos corpos tatuados e nas redes sociais de agentes; com o suposto policiamento de proximidade; com maior representatividade étnico-racial na polícia das periferias urbanas; e, muito menos ainda, através de uma “superpolícia”.
Tendo em conta o problema estrutural da violência policial na nossa sociedade, exigimos:
1. Menos investimento na polícia, mais nas políticas sociais. Lembremo-nos que, em janeiro, o MAI anunciou que iria contratar mais dez mil polícias, isto num dos países da UE com maior percentagem de agentes e considerado o 3.º país mais pacífico do mundo. Portugal surge também como o 2.º da UE15 com as taxas de encarceramento mais elevadas e um dos que tem penas mais longas (32,4 face à média de 10,6 meses dos 47 países do Conselho da Europa, em 2018). É preciso perguntar porquê tanta força policial? E que tipo de sociedade é aquela em que a despesa pública com “segurança e ordem públicas” é 37 vezes superior à despesa com habitação e serviços coletivos (3272 milhões para 87 milhões de euros, em 2018)? Defendemos, assim, que esses recursos sejam cada vez mais deslocados para políticas sociais, nomeadamente para a habitação, emprego, saúde e educação. Esta é a maior arma contra a violência policial.
2. Extinção de todos os mecanismos do Estado que, institucionalmente, criminalizam as comunidades imigrantes, negras, ciganas e pobres, ao criarem aparatos policiais específicos. Exigimos, assim, o fim do SEF e dos seus centros de detenção, verdadeiras prisões (Centros de Instalação Temporária e Espaços Equiparados a Centros de Instalação Temporária). Estes são lugares onde se chega a deter crianças ou a retirá-las às suas famílias; e que não protegem as mulheres do assédio sexual e outras violências. É preciso acabar também com as deportações, inclusive enquanto pena acessória, veja-se o recente caso de Gilson Pereira. No fundo, a “Europa fortaleza” criminaliza para poder legitimar a violência brutal que exerce sobre as populações do Sul Global. Exigimos ainda o fim da categoria “Zonas Urbanas Sensíveis”, assim como do artigo 250.º do Código de Processo Penal. Estes mecanismos, que permitem a suspensão sistemática dos direitos de cidadania, têm que ser abolidos.
3. Maior rigor na investigação e verdadeiras consequências judiciais nos casos de violência, abuso da força, incluindo a discriminação racial e xenófoba na polícia. Todos os casos que têm vindo a público mostram como a impunidade se tece, não só através de práticas corporativistas de encobrimento, mas também de cadeias burocráticas ineficientes e seletivamente desleixadas para com “os/as debaixo”. As queixas por racismo e xenofobia na CICDR, ou de violência na IGAI, raramente levam a qualquer condenação: o arquivamento é o seu destino mais comum. No caso de Ihor Homenyuk é preciso chamar ainda à responsabilidade as diversas estruturas envolvidas: desde logo, o SEF, MAI, IGAI, INEM, Cruz Vermelha e Prestibel.
4. Escrutínio consequente dos/as agentes, através da sua expulsão imediata quando tenham comprovadamente feito uso excessivo da força, sido racistas e xenófobos/as na sua vida profissional ou privada; sido cúmplices desses atos por inação ou ocultação. Exige-se também a suspensão imediata de funções de quem, independentemente da posição hierárquica, esteja a ser investigado por crimes desta natureza. Isto deveria ser óbvio e imediato, mas não é.
5. Limitação das formas de repressão legalmente ao dispor da polícia. Nomeadamente, a proibição do uso de carros blindados, como aqueles que Magina da Silva exigiu para intervir nos bairros e na Cimeira da Nato em 2010. Proibição do uso de armas letais no policiamento que levaram à morte, entre outras/os, de António Pereira (Toni) (2002), Ângelo Semedo (2001) e Elson Sanches (Kuku) (2009), estes últimos com 17 e 14 anos. Fim do uso sistemático de drones, câmaras de vigilância e piquetes de intervenção rápida nos bairros da periferia, transformados pela classificação de Zonas Urbanas Sensíveis em “zonas de guerra”. Esta situação leva a uma violência quotidiana (revista aleatória; proibição de entrada e saída nos bairros; demonstrações ostensivas de armamento, etc.), que se agravou com as medidas de confinamento da covid-19. Proibição do uso de chaves ao pescoço, de placagens ventrais ou estrangulamentos, como a que foi usada pelo agente Carlos Canha para “deter” violentamente Cláudia Simões. Do mesmo modo, defendemos a proibição de disparos sobre carros em movimento e outras técnicas com evidentes riscos letais que, em Portugal, levaram à morte de Carlos Reis (PTB) (2003); Nuno Rodrigues (MC Snake) (2010); Paulo Jorge, jovem cigano, de 13 anos, morto por Hugo Ernano (2008), atualmente uma das lideranças do Chega e ainda exercendo funções na GNR; ou de Ivanice Costa, mulher brasileira, morta na sequência de 40 disparos realizados sobre a viatura onde seguia (2017).
O bárbaro assassinato de Ihor Homenyuk por Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva, inspetores do SEF, e seu encobrimento por diversas instituições, assim como tantos outros casos de violência policial, exigem que sejam feitas mudanças estruturais. O combate à sistemática violência de Estado sobre as populações imigrantes, racializadas e pobres faz-se indo à raiz do problema: mais políticas sociais, menos violência policial.
Colectivos signatários:
Associação Cavaleiros de São Brás
Associacao Cigana de Aveiro Aurora Negra
Brigada Estudantil
CABE - Comissão de Apoio às Brasileiras no Exterior
Colectivo Semear O Futuro
Coletiva Corpos Insubmissos
Coletivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras - Lisboa Consciência Negra
Em Luta
Extinction Rebellion Lisboa
GAAL- Grupo Ação Antifascista Lisboa
Grupo EducAR
GTOXL
Habita- Associaçáo pelo Direito à Habitaçáo
INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal
Kale Amenge
Letras Nómadas Aidc
Movimento dxs Trabalhadorxs do Sexo
MUXIMA Bio
NARP - Núcleo Anti-Racista do Porto
NAC - Núcleo Antirracista de Coimbra
Panteras Rosa - Frente de Combate à LesBiGayTransfobia
Plataforma Antirracista ISCTE
Plataforma Gueto
Sindicato dos Trabalhadores de Call Center (STCC-Tás Logado?)
SOS Racismo
Toupeira Vermelha
Pessoas signatárias:
Ágata Pinho
Alexandra Santos
Alistair Grant
Ana Cristina Pereira
Ana Fernandes
Ana Filipa Tavares
Ana Rita Alves
Anabela Rodrigues
António Alves
António Louçã
António Paulo Dionísio de Sousa
António Pedro Dores
Apolo De Carvalho
Ariana Furtado
Bárbara Góis
Carla Fernandes
Carlos Pio
Carmo G. Pereira
Cátia Fortes
Cayetano Fernández
Celso Lopes
Cíntia Gil
Craig Gilmore
Cristina Roldão
Cristina Santinho
Dália Marques Pereira
Daniel Tércio Guimarães
Diandra Caetano
Diógenes Parzianello
Diogo Allen
Dori Nigro
Edna Tavares
Eliseu Sequeira
F. Paula e Rodrigues
Fabián Cevallos Vivar
Fátima Vieira
Fernando André Rosa
Filipa Bossuet
Flávio Zenun Almada “Lbc Soldjah"
Francisco Colaço Pedro
Geanine Escobar
Hans Eickhoff
Helena Dias
Helena Romão
Helena Vicente
Inês Cordeiro Dias
Inês Garcia-Marques
Inês Gonçalves da Silva
Isabel Ferreira Gould
Isabel Louçã
Joana Góis Costa
João Carlos Louçã
João Faria-Ferreira
João Salaviza
Jorge Fonseca de Almeida
José Menezes
José Rui
Jose Rui Rosario
Julio Esteves
Leonor Teles
Lucas Reis
Lúcia Furtado
Luciana Moreira Silva
Luísa Semedo
Mamadou Ba
Mamadu Cirem Djabi
Maria Gil
Maria Manuela Graça da Cruz Tenreiro
Mariana Gaivão
Mário Moura
Marta Araújo
Melissa Rodrigues
Miguel F.
Miguel Moraes Cabral
Miguel Vale de Almeida
Mó Costa
Myriam Taylor Carvalho
Nuno Marques
Otávio Raposo
Paola Alves
Patrícia Almeida
Patrícia Martins Marco
Paulo Raposo
Pedro Joel
Pedro Schacht Pereira
Pedro Varela
Piménio Ferreira
Rafaela Aleixo
Rafaela Matos
Raquel Lima
Renee Nader Messora
Ricardo Penedo
Ricardo Robles Zamarripa
Rita Bernardes
Rita Cássia Silva
Rui Gomes Coelho
Ruth Wilson Gilmore
Sandra Costa
Sandra Oliveira
Sara Martinho
Sara Palma Soares
Sebijan Fejzula
Sérgio Vitorino
Silvia Maeso
Sofia Lobo
Soraia Simões de Andrade
Suzana Leite Fonseca
Vasco Sampaio
Vinicius Oliveira
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico