Cabo Delgado: um teste à Presidência Portuguesa do Conselho da UE
Resta saber se Portugal estará à altura de assumir verdadeiramente esse complexo papel, também exercendo pressão sobre o Governo moçambicano para uma resolução do conflito a bem da população de Cabo Delgado, ou se vai apenas subscrever a actuação do Governo Nyusi, para assim proteger os interesses estratégicos e económicos que Portugal tem em Moçambique.
Para a Presidência do Conselho da UE, com início a 1 de Janeiro de 2021, António Costa anunciou, de entre cinco tópicos prioritários, “Atribuir especial atenção à dinamização e densificação do relacionamento UE-África”.
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Para a Presidência do Conselho da UE, com início a 1 de Janeiro de 2021, António Costa anunciou, de entre cinco tópicos prioritários, “Atribuir especial atenção à dinamização e densificação do relacionamento UE-África”.
Em conversa telefónica com o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, Costa confirmou, no final de Novembro, a disponibilidade de Portugal para “apoiar, bilateralmente, e no quadro da União Europeia”, o país nos esforços de combate ao terrorismo na província de Cabo Delgado e anunciou a próxima cimeira bilateral a ter lugar em Maputo, no segundo semestre de 2021, com o objectivo de aprofundar a cooperação bilateral.
No entanto, o agravamento da crise humanitária resultante do conflito em Cabo Delgado – com mais de 560.000 deslocados internos e mais de 2000 mortos – não permite esperar tanto, conforme prova a dinâmica desenvolvida nas duas últimas semanas.
Desde a declaração de António Costa, a situação em Cabo Delgado foi debatida duas vezes no Parlamento Europeu. Na audição especial das comissões de Desenvolvimento e dos Negócios Estrangeiros, os participantes apoiaram unanimemente a continuação da chamada abordagem “triplo nexo": ajuda humanitária, apoio ao desenvolvimento de longo prazo e apoio à segurança. No consenso geral, foi manifestada uma forte oposição a que as questões militares e de segurança fossem priorizadas. Assim, a nova directora executiva para África do Serviço Europeu para a Acção Externa (SEAE), Rita Laranjeira, considerou errado “privilegiar a segurança” e afirmou ser necessário “enfrentar a crise e as suas causas profundas”.
Já no debate plenário do Parlamento Europeu, o Alto Representante da União, Josep Borrell, foi ainda mais explícito na resposta às acusações feitas pelo eurodeputado português, Paulo Rangel (PPE), de que a UE estava a falhar face à crise em Moçambique.
Borrell afirmou que a prioridade era a ajuda humanitária, estando a UE a fazer tudo ao seu alcance para ajudar. De forma muito directa e pouco habitual para um diplomata, Borrell salientou que:
- a UE está a aguardar desde Novembro autorização do Governo moçambicano para o envio de uma missão de peritos em segurança. Os peritos estão prontos a partir para Moçambique, mas o Governo continua na dúvida se prefere os peritos da UE ou prefere relações bilaterais com certos países da União Europeia. “Estamos preparados para enviar missões, mas precisamos que o Governo as aceite”;
- Moçambique está a atravessar uma profunda crise financeira, com um nível de dívida que excede 110% do seu Produto Interno Bruto, e só graças à ajuda maciça de doadores internacionais conseguiu manter-se; houve sérios problemas de corrupção, o que levou o Fundo Monetário Internacional a suspender o seu programa de ajuda financeira e a comunidade internacional a reduzir o seu apoio;
- tudo o que está a acontecer em Moçambique não é simplesmente uma extensão dos movimentos do chamado terrorismo islamista. Embora essa seja uma parte do problema, a outra é que a violência armada no norte de Moçambique tem sido, desde o início, impulsionada pela pobreza e desigualdade e pelo distanciamento de um Estado que não consegue fornecer à população os bens mais básicos. Além de problemas de tráfico, etc.;
- as gigantescas reservas de gás natural existentes em Moçambique provocam nas pessoas um sentimento paradoxal ("somos um país rico e vivemos na pobreza"), por verem as suas expectativas de desenvolvimento frustradas e os graves problemas de governação.
A bola está agora oficialmente no campo de Portugal, não só no que toca à cooperação bilateral com Moçambique, mas também para actuar em nome da UE. Isso não será fácil, se o objectivo for estar à altura da complexidade da situação. Santos Silva apressa-se a defender o Governo moçambicano contra as críticas, referindo-se à sua soberania nacional. Estranho é que, depois, afirme tratar-se de uma crise de segurança global: “A gravidade da situação, que não diz respeito apenas a Moçambique, mas a toda a África Oriental e à segurança global, está a ser bem apreendida por todos e estamos a mobilizar-nos para apoiar Moçambique.” (PÚBLICO, 16.12)
Em relação ao apoio à segurança/apoio militar, Portugal parece ter já tomado uma decisão bilateral. Segundo o ministro da Defesa português, Portugal vai apoiar Moçambique na organização logística e na capacitação de militares para fazer face aos grupos rebeldes na província de Cabo Delgado. João Gomes Cravinho confirmou que, a partir de Janeiro, uma equipa de militares portugueses irá concretizar a cooperação militar em aspectos de formação, a ser feita em Moçambique, abrangendo as forças de intervenção rápida, forças especiais, fuzileiros e militares da área do controlo aéreo táctico, tendo sido definidas como “áreas de interesse específico” a ciberdefesa, a cartografia, a hidrografia e a cooperação industrial de defesa. (PÚBLICO, 11.12)
A iniciativa unilateral de Portugal em termos de apoio militar é questionável, na medida em que o Governo moçambicano tem seguido, até agora, uma política de informação assaz opaca sobre o que está realmente a passar-se em Cabo Delgado.
Na última semana, na apresentação do relatório anual sobre a situação da Nação, o Presidente moçambicano declarou que as primeiras manifestações de extremismo violento começaram em 2012, mas não explicou por que razão o Governo, durante todos os anos seguintes, não levou a sério o problema, mesmo depois do primeiro ataque à vila municipal da Mocímboa da Praia, em Outubro de 2017. Nyusi voltou a reduzir o conflito exclusivamente a uma agressão externa liderada por estrangeiros, com destaque para tanzanianos, congoleses, quenianos e somalis.
Na mesma ocasião, Nyusi elogiou as forças de segurança moçambicanas no combate aos terroristas, sem porém mencionar os mercenários que operam em Cabo Delgado.
Segundo várias fontes, Filipe Nyusi ordenou a contratação das empresas sul-africanas de defesa Paramount e Dyck Advisory Group para fornecer apoio militar terrestre e aéreo no combate ao terrorismo na província de Cabo Delgado. No âmbito do negócio, segundo a mesma fonte, as duas empresas sul-africanas vão reforçar “substancialmente” a capacidade militar das Forças Armadas de Moçambique (FADM) e da Polícia da República de Moçambique (PRM), através dos contratos negociados “pessoalmente” com o chefe de Estado moçambicano.
É interessante notar que Moçambique não aderiu ao acordo da União Africana ou da ONU contra o recurso a mercenários, por não garantirem o respeito pelos direitos humanos e não permitirem uma monitorização internacional. Na sua resolução de Setembro, o Parlamento Europeu lamentou precisamente a utilização de forças de segurança privadas em Moçambique, também devido ao facto de inflacionarem o custo monetário para o país.
A complexidade da situação é agravada pelos interesses de outros actores na região. Os EUA já se mostraram disponíveis para uma cooperação militar directa com Moçambique, à luz dos seus fortes interesses geoestratégicos no país. Os interesses económicos estão representados pelos investimentos previstos da gigante petrolífera norte-americana Exxon Mobil nos projectos de exploração de gás em Cabo Delgado, bem como pela garantia de um crédito, no montante de cinco mil milhões de USD, do banco de importação e exportação Exim ao grupo francês Total, com a condição de que os bens e serviços sejam adquiridos nos EUA.
Washington quer ainda interromper a importante rota do tráfico de droga proveniente da Ásia, a qual, segundo vários peritos, beneficia as elites locais em Cabo Delgado e até alguns membros do governo em Maputo.
À semelhança dos EUA, a França tem consideráveis interesses geopolíticos no estreito de Madagáscar, por exemplo, com o seu enclave de Mayotte, e deu já garantias de que irá assegurar os investimentos no gás, em particular, o mega-investimento da Total e outros subcontratantes franceses que aí operam, patrulhando com a sua frota marítima ao largo da costa.
Pouco claras são também as razões pelas quais nem a aliança regional SADC, nem a UA, tomaram, até agora, uma posição clara sobre um apoio militar. Parece que o Governo de Maputo, invocando a sua soberania nacional, não quer que os Estados vizinhos participem na solução, provavelmente devido às críticas já expressas em relação a Maputo: “Silenciar as armas nessas situações requer lidar com as raízes do conflito, que invariavelmente incluem défices de governação, abusos de direitos humanos e contestação de recursos”, afirmou a ministra das Relações Internacionais e Cooperação da África do Sul, após um encontro com jornalistas em Pretória, segundo a Deutsche Welle no dia 14.12.
Nas últimas semanas, a questão da guerra em Cabo Delgado foi também discutida na Comissão de Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas do Parlamento português. Inexplicavelmente, as audiências foram realizadas à porta fechada.
Ainda esta semana serão discutidos na Assembleia da República dois projectos de resolução apresentados pelo CDS e pelo PAN, ambos baseados em argumentos que não reflectem o essencial do problema (Daesh e crise humanitária).
Ao contrário da superficial fundamentação destes projectos de resolução, o corajoso bispo de Pemba, D. Luiz Lisboa, não hesitou em apontar as principais causas que estão na origem da guerra. Numa sessão online da Igreja Católica em Portugal, realizada na última semana, o bispo – que, em Junho deste ano, recebeu ameaças de morte devido às suas declarações críticas, o que até levou a uma discreta intervenção do Papa – também apelou à Presidência Portuguesa da União Europeia para que actue sobre as “causas da guerra”, nomeadamente os recursos naturais. D. Luiz referiu ainda: “Cabo Delgado foi ignorado, foi deixado de lado durante muito tempo. E esse é um dos motivos que ajudaram a que essa juventude fosse arrastada para esses grupos” rebeldes.
Os desafios mencionados requerem uma actuação integrada e coordenada dos actores envolvidos. No entanto, o pré-requisito fundamental é a vontade do Governo moçambicano de participar, de forma construtiva, numa solução que responda às necessidades da população.
A Presidência Portuguesa irá enfrentar difíceis desafios de mediação. Os laços históricos e bons contactos com Moçambique, incluindo a vantagem da comunicação numa língua comum, são, certamente, factores facilitadores.
Resta saber se Portugal estará à altura de assumir verdadeiramente esse complexo papel, também exercendo pressão sobre o Governo moçambicano para uma resolução do conflito a bem da população de Cabo Delgado, ou se vai apenas subscrever a actuação do Governo Nyusi, para assim proteger os interesses estratégicos e económicos que Portugal tem em Moçambique.