Covid-19: Suécia com muitas mortes, poucas camas e demasiadas opiniões

A segunda vaga de infecções afectou toda a Europa e a Suécia não foi excepção. No entanto, no país escandinavo que optou por uma invulgar estratégia de resposta à pandemia sobressaem agora as falhas do sistema.

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Tal como a pandemia, a estratégia de resposta à covid-19 na Suécia também já passou por várias fases. E se há pouco tempo se discutia o sucesso de uma fórmula que fazia com que o país sem máscaras obrigatórias registasse uma das médias mais baixas de infecções na Europa, agora o elevado número de mortes somadas na segunda vaga está a fazer sobressair as falhas do sistema que quis destoar do coro europeu, optando por uma gestão da pandemia com menos restrições.

Como todas as outras, a estratégia sueca teve (e tem) pontos fortes e fracos. “Claramente, alguns erros foram cometidos, mas alguns dos fracassos da estratégia sueca deveram-se a condições que a Suécia teve dificuldades em controlar e influenciar”, resume ao PÚBLICO Jonas Ludvigsson, epidemiologista sueco no Instituto Karolinska. Numa análise a algumas das principais componentes da solitária abordagem à pandemia feita pela Suécia, o especialista começa por esclarecer: “Nunca tivemos o objectivo de deter a doença. Sabíamos que não o conseguíamos e tínhamos razão quanto a isso.” Ninguém conseguiu travar esta pandemia. É óbvio que Jonas Ludvigsson se esforça por oferecer uma visão equilibrada, mas sem perder o pé da realidade: “Creio que a Suécia foi capaz de mitigar a doença, mas eu esperava ainda menos casos.”

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O médico e investigador sueco Jonas Ludvigsson Alexander Donka

Em meados de Setembro, segundo o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, na sigla inglesa), a Suécia registava nos últimos 14 dias um total de 22,2 casos por 100 mil habitantes. Na lista com dados de 31 países, 22 apresentam taxas de infecção mais elevadas do que a Suécia. Os dados do ECDC com data de 14 de Dezembro mostram uma realidade muito diferente. Na mesma lista de 31 países, contavam-se apenas quatro (Croácia, Eslovénia, Lituânia e Luxemburgo) com um total acumulado de casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias acima dos 738 casos registados na Suécia.

No relatório semanal referente à semana 50 (o ECDC alterou este mês a forma como divulga os dados sobre covid-19 na Europa passando a relatórios semanais), a Suécia surge já com 781 casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias. Actualmente, o país de pouco mais de dez milhões de habitantes já conta com mais de 341 mil casos confirmados de infecção e mais de 7600 mortes. A mortalidade é muito superior (quase cinco vezes mais) à encontrada nos países vizinhos Noruega, Finlândia e Dinamarca. E, além da boa notícia da chegada da vacina mas que vale para o resto do mundo, não parece haver mais nada de positivo a dizer sobre a actual situação da Suécia em relação à covid-19.

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Placa com a frase "O perigo não acabou - Mantenha a sua distância" numa rua da Suécia TT News Agency/Claudio Bresciani via REUTERS

Umas das principais críticas que têm sido feitas à estratégia sueca e que já levaram vários responsáveis a fazer publicamente um mea culpa tem a ver com o fracasso na protecção dos mais velhos. O primeiro-ministro sueco já o reconheceu e, mais recentemente, até o Rei da Suécia, Carlos XVI Gustavo, admitiu que a estratégia nacional para lidar com a pandemia de covid-19 falhou, tendo classificado como “terrível” o “grande” número de mortes registadas.

“Não conseguimos proteger os idosos. Isto deveu-se em parte a decisões tardias (por exemplo, proibir outros de visitar lares de idosos), e à falta de compreensão, mas também devido à falta de equipamento de protecção”, reconhece também Jonas Ludvigsson. Mas houve coisas menos más, nota o especialista que defende: “Fomos capazes de manter a saúde de outros grupos de risco e manter as escolas abertas. Penso que a Suécia tem sido bastante bem-sucedida aqui.”

A verdade é que há cada vez mais especialistas a concluir que, afinal, o confinamento suave da Suécia não resultou. Pelo menos, não terá evitado um número elevado de mortes – sobretudo entre os mais velhos – nem terá sido capaz de evitar uma sobrecarga e pressão nos serviços de saúde. No início da semana passada, a agência de estatística sueca (o equivalente ao INE em Portugal) divulgou o registo de um total de 8088 mortes por todas as causas em Novembro – a maior mortalidade global desde o primeiro ano da gripe espanhola que assolou todo o mundo entre 1918 e 1920. Em Novembro de 1918, 16.600 pessoas morreram no país escandinavo.

Uma notícia publicada a 14 de Dezembro no site da revista British Medical Journal (BMJ) alertava para as queixas dos profissionais de saúde na Suécia que avisavam que as unidades de cuidados intensivos (UCI) em Estocolmo e arredores se encontram actualmente sob forte pressão e perto de esgotar a capacidade de resposta pela primeira vez durante a pandemia. “Embora os hospitais da cidade possam aumentar o número de camas atribuídas às UCI, não há pessoal especializado suficiente para as apoiar”, disse Björn Eriksson, director dos Cuidados de Saúde da Região de Estocolmo, à BMJ concluindo: “Até agora, temos estado um passo à frente do vírus, abrindo continuamente mais locais de cuidados para que estejam disponíveis quando a necessidade surgir. Agora, o pessoal de saúde está tão pressionado e as margens são tão apertadas que a 10 de Dezembro pedi formalmente mais pessoal especializado ao Conselho Nacional de Saúde.”

“Estamos muito além dos 100% da capacidade em cuidados intensivos. Estamos a aproximar-nos quase do dobro do número de espaços disponíveis”, referiu Björn Eriksson numa conferência de imprensa realizada na semana passada. O responsável terá ainda lamentado o comportamento dos cidadãos desabafando: “Simplesmente não pode valer a pena tomar bebidas depois do trabalho e fazer compras de presentes de Natal... as consequências são horríveis.”

Sineva Ribeiro, a presidente da Associação Sueca de Profissionais de Saúde, também já admitiu que a situação actual “é terrível”, em declarações à Bloomberg. Esta responsável afirmou que a escassez de enfermeiros especializados, sobretudo nas UCI, já era um problema antes da primeira vaga em Março e agora é ainda mais grave. O Governo sueco mudou a sua abordagem à pandemia no mês passado introduzindo restrições mais rigorosas após um aumento de casos confirmados de infecção, juntamente com uma subida do número de hospitalizações e mortes.

Jonas Ludvigsson tenta colocar água na fervura. “A Suécia conseguiu evitar um colapso dos cuidados de saúde”, afirma o epidemiologista admitindo, no entanto, que “várias regiões têm estado sob forte pressão, especialmente nas unidades de cuidados intensivos”.

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Mas, o especialista insiste em manter o tom equilibrado e não desafina. Assim, por um lado, admite que a Suécia “foi particularmente bem-sucedida” ao evitar um lockdown geral e ao assegurar o funcionamento da sociedade tais como cuidados de saúde, polícia, abastecimento de energia ou abastecimento alimentar. “O impacto económico na Suécia tem sido menor do que em muitos outros países. Isso é bom”, sublinha.

 Mas, por outro lado, Jonas Ludvigsson concede também que “a Suécia falhou em fazer a coisa certa na altura certa”. “Aqui poderia ter feito melhor. Deveríamos ter feito algumas coisas mais cedo, tanto durante a Primavera como durante o Outono”, diz.

Sobre o impacto a longo prazo na Suécia da desordem mundial instalada pela covid-19, o epidemiologista acredita que o país vai aprender com as duras lições. “A organização dos lares de idosos irá provavelmente mudar, acredito que algumas novas leis serão instituídas para permitir restrições suaves. Também temos uma chamada dívida de saúde, ou seja, precisamos de começar a trabalhar com pessoas com outras doenças em breve.”

Há pouco tempo, o primeiro-ministro Stefan Löfven anunciou, por exemplo, que a proibição de reuniões de mais de oito pessoas se estenderia às férias de Natal, enquanto as escolas secundárias foram aconselhadas a mudar para o ensino à distância durante o resto do período. O Governo também pediu ao Parlamento mais autoridade para implementar novas medidas, como o encerramento de centros comerciais e ginásios.

No início da semana passada, Stefan Löfven admitiu mesmo que terá havido um erro de avaliação da pandemia por parte dos responsáveis da saúde. “Penso que a maioria dos especialistas não viu uma segunda vaga à sua frente, falavam em surtos”, declarou ao jornal Aftenposten. As primeiras conclusões do relatório da comissão independente criada em Julho para avaliar a resposta à pandemia no país não melhoraram a fotografia difundindo a ideia que “a Suécia falhou na sua estratégia de protecção dos idosos” após uma análise à situação vivida nos lares, que era já vista como um ponto fraco da estratégia sueca. Os especialistas criticam o levantamento da proibição de visitas que esteve em vigor numa fase inicial e falam na falta de recursos humanos especializados, bem como de material de protecção nestes estabelecimentos. 

Estocolmo é uma das zonas do país que estão a ser particularmente atingidas. Johan Styrud, presidente da Associação Médica de Estocolmo e médico no Hospital Danderyd, uma das principais unidades de saúde, disse à BMJ que gostaria de ver uma adesão da população mais rigorosa às directrizes governamentais para ajudar a aliviar a pressão sobre o sistema de saúde. No entanto, Karin Tegmark Wisell, da Agência de Saúde Pública, que gere pandemias na Suécia, afirmou na conferência de imprensa semanal de 10 de Dezembro que os dados mostram que os suecos estão a aderir às recomendações e a circular menos pelo país.

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O epidemiologista Anders Tegnell da Agência Nacional de Saúde TT News Agency/Anders Wiklund via REUTERS

Apesar do cuidado que Jonas Ludvigsson tem nas palavras, a preocupação com a actual situação da Suécia está a multiplicar os avisos dos especialistas. Em declarações ao jornal The New York Times, Karin Hildebrand, cardiologista da UCI do Hospital Sodersjukhuset, em Estocolmo, alertava: “Receio que vá ficar ainda pior. Todos tememos as próximas semanas. Não temos pessoal suficiente para lidar com isto.” Tove Fall, um professor de epidemiologia molecular da Universidade de Uppsala, perto de Estocolmo, disse ao The Times: “Precisamos de algumas semanas de encerramento para baixar os números.” Em declarações ao mesmo jornal, Fredrik Elgh, professor de virologia clínica na Universidade de Umea e crítico declarado da estratégia covid-19 no país, lamentava no início deste mês: “Esperava que esta grave situação mudasse as coisas, mas abriram os elevadores de esqui na Suécia. Tendo em conta tais acções, não creio que o Governo esteja a tomar as medidas firmes que eu esperava.”

O modelo sueco de resposta ao coronavírus foi diferente do resto da Europa, por vários motivos. Por um lado, entre outras medidas de restrição mais suave, os responsáveis de saúde não quiseram obrigar os cidadãos a usar máscara argumentando que o distanciamento físico seria suficiente para conter a transmissão da infecção. Por outro lado, a adopção do teletrabalho que foi forçada em muitos outros países é algo que é há muito tempo relativamente normal na Suécia. À frente da equipa que decide as medidas a aplicar, independentemente do poder político, está o epidemiologista Anders Tegnell, que tem sido duramente criticado. Mas a contestação é antiga. Numa carta aberta ao Governo 22 cientistas pediram logo em Abril medidas mais restritivas. “Estão a encaminhar-nos para uma catástrofe”, referia já nessa altura ao The Guardian Cecilia Sóderberg-Nauclér, investigadora em imunologia no Instituto Karolinska, que acusa as autoridades de saúde e políticas de terem “desistido” quando perceberam que, afinal, o vírus estava a invadir a Suécia. Tal como fez no resto do mundo.