O que se sabe sobre a variante do coronavírus encontrada em Inglaterra

Os primeiros genomas disponíveis em que se descreve esta variante são de 20 de Setembro e pertencem a amostra no condado de Kent, no Sudeste de Inglaterra. Há 14 mutações genéticas definidoras desta variante.

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Instituto Wistar

Nos últimos dias, assistimos a uma escalada de atenção dada a uma variante do coronavírus SARS-CoV-2 conhecida como VUI–202012/01 (que significa Variante Sob Investigação, no ano de 2020, do mês 12, da variante 01). Embora não pareça ser mais perigosa ao nível da doença e da mortalidade, o Governo britânico disse que parece estar a espalhar-se de forma mais rápida do que seria de esperar em Londres e no Sudeste de Inglaterra, podendo mesmo aumentar o Rt (índice de contágio) em 0,4 ou mais e ser 70% mais transmissível. Essa variante levou vários países a impor restrições a viagens e voos com o Reino Unido. Mas que variante é esta? O que a diferencia de tantas outras para estarmos a falar tanto dela? E pode ter influência na eficácia das vacinas?

O que é uma variante genética?
Uma variante ocorre quando um vírus sofreu mutações ou combinações de mutações genéticas que o podem levar a adquirir algumas características diferentes. “Neste momento, provavelmente, há algumas centenas de variantes descritas deste vírus a circular em todo o mundo, mas nem todas estão associadas a alguma coisa especial, como na sua função ou patogenicidade”, refere o virologista Celso Cunha, salientando que a definição de variante não é muito consensual.

O investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa explica que, quando somos infectados, o vírus a começa a multiplicar-se dentro das células e produz centenas de cópias que vão infectar outras células. Dentro de nós, quando ficamos doentes, acabamos por ter em simultâneo milhões de partículas virais e elas são diferentes. “Quando somos infectados, temos várias variantes do vírus dentro de nós”, nota o virologista. “Depois, algumas podem adquirir capacidades que as tornam mais favoráveis à sua replicação no nosso organismo.”

Já agora, as mutações genéticas ocorrem de forma aleatória. Estas alterações estão relacionadas com a mutação natural do vírus durante o processo infeccioso à medida que vai passando de pessoa para pessoa. Estas alterações genéticas podem ser vantajosas, neutras ou prejudiciais para o vírus.

O que sabemos sobre a variante VUI–202012/01?
Esta variante do SARS-CoV-2 tem cerca de 20 mutações em comparação com o primeiro genoma sequenciado do vírus. Dessas, 14 são consideradas definidoras da VUI–202012/01​ (ou seja, aparecem exclusivamente nesta variante), incluindo sete na proteína da espícula, que é responsável pelo vírus entrar nas células, indica ao PÚBLICO Lucy van Dorp, geneticista do University College de Londres, que estuda as mutações do SARS-CoV-2. A cientista refere que é com estas 14 que há maior preocupação, pois diferenciam esta variante de outras em circulação. “Algumas dessas mutações já tinham sido observadas no SARS-CoV-2 antes, mas não na combinação que vimos nesta variante.” Quanto ao número de mutações, considera: “Este é um número relativamente grande de alterações se as compararmos com as muitas variantes em circulação a nível global”. 

Quando e onde surgiu a nova variante?
Não se sabe bem quando e onde surgiu. Aquilo que se sabe é que os primeiros genomas disponíveis em que se descreve esta variante são de 20 de Setembro e pertencem a amostra no condado de Kent, no Sudeste de Inglaterra. “Até agora, a maioria dos genomas virais foi verificada em amostras do Reino Unido, mas também há casos na Dinamarca, nos Países Baixos, na Austrália e em Itália”, indica Lucy van Dorp. A geneticista diz que o Reino Unido é o país que fez a maior quantidade de sequenciação de genomas e que “é possível que esta variante tenha uma distribuição geográfica mais ampla”.

O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em Lisboa, disse no domingo ainda não ter identificado, até ao momento, em Portugal qualquer caso desta variante.

É mais contagiosa?
Num resumo de domingo do Grupo Consultivo de Ameaças de Vírus Respiratórios e Emergentes (um órgão consultivo do Governo do Reino Unido), os especialistas escreveram que tinham “uma confiança moderada” de que a variante demonstrava um aumento substancial na transmissibilidade comparado com outras variantes, refere o jornal britânico The Guardian. Mesmo assim, acautelaram que os dados ainda são preliminares e baseados em modelações.

Já Lucy van Dorp diz ao PÚBLICO: “Neste momento, não está totalmente confirmado que a variante é mais contagiosa ou até que ponto o é.” A geneticista também realça os valores divulgados pelo Grupo Consultivo de Ameaças de Vírus Respiratórios e Emergentes, que sugerem que o ritmo de crescimento desta variante é entre 67% a 75% mais elevado do que o de outras variantes. “Esperamos por pormenores de como isto foi calculado. Até agora, existem várias pistas que sugerem que esta variante requer um estudo aprofundado, uma delas é o aumento acentuado no Reino Unido.”

Por sua vez, Stuart Neil, professor de virologia no King’s College de Londres, referiu ao The Guardian que “os dados que se reuniram permitem dizer de forma coerente que a variante é mais infecciosa ou que é capaz de se espalhar de forma mais eficaz”. Contudo, assinala que “não há nenhuma confirmação laboratorial disso ou de qualquer ideia da razão pela qual se está a espalhar depressa”.

Também Celso Cunha refere que os modelos matemáticos sugerem que se tornou mais transmissível e que existe uma correlação entre o aumento da prevalência desta variante do Sul de Inglaterra e o aumento do número de casos naquela zona. “Em Setembro eram cerca 30% de casos associados a esta variante e agora são à volta de 60%. Tornou-se a mais prevalente – daí dizerem que é mais transmissível porque acabou por ser dominante naquele local”, diz o virologista. Para ser mais transmissível pode haver vários factores associados, como do próprio vírus ou do comportamento das pessoas. “Tem de se investigar”, recomenda.

É mais perigosa para a doença?
Até agora, parece que não. O director-geral da Saúde britânico, Chris Whitty, afirmou que, até à data, não há provas de que esta variante altere a gravidade da doença, seja em termos de mortalidade ou de gravidade dos casos de covid-19. Mas são necessários mais estudos que o confirmem.

Celso Cunha também refere que “aparentemente não” é mais perigosa: “A gravidade dos sintomas das pessoas infectadas com esta variante é semelhante à das pessoas infectadas com as outras variantes.”

Pode afectar a eficácia das vacinas?
“Neste momento, não se sabe”, responde Lucy van Dorp. Contudo, a geneticista diz que a expectativa é que as mutações não tornem as vacinas actuais significativamente menos eficazes. “As vacinas estimulam uma ampla resposta dos anticorpos a toda a proteína da espícula e apenas um pequeno grupo de mutações foram observadas nesta região. Isto já está a ser testado”, esclarece. Mesmo assim, a cientista avisa: “A longo prazo, é possível que as vacinas precisem de ser actualizadas periodicamente para reflectir as variantes dominantes em circulação, tal como acontece com o que se faz com a gripe”.

Celso Cunha também diz que “é muito cedo para se falar” se a variante pode afectar a eficácia das vacinas. “As vacinas que estão a ser produzidas são dirigidas contra a proteína à superfície do vírus e nesta variante foram descritas mutações associadas a essa proteína.” Também o virologista avisa que é preciso estarmos atentos. Afinal o facto de produzirmos anticorpos contra essa proteína não significa que esses anticorpos consigam neutralizar a função da tal proteína, pois depende das regiões onde se dirigem. “Apenas alguns [anticorpos] são capazes de neutralizar a função dessa proteína ou impedir que se ligue a um receptor. Temos de estar atentos para ver se não só se produzem anticorpos contra essa proteína como também se continuam a ser neutralizantes na prevenção da doença.”

Por que é que se começou a falar tanto desta variante agora?
A 14 de Dezembro, Matt Hancock, ministro da Saúde britânico, disse foi identificada no Reino Unido uma variante que autoridades acreditavam que “poderá estar associada à disseminação mais rápida do vírus no Sul da Inglaterra”. Isto aconteceu depois de anunciar que Londres e partes do Sul da Inglaterra iriam entrar no nível mais severo de restrições. A agência de saúde pública Public Health England e o consórcio de sequenciação do vírus da covid-19 do Reino Unido tinham confirmado antes altos níveis de infecções no Sul de Inglaterra e que havia uma variante com cerca de 20 mutações frequente nesta área.

Para responder a esta questão, Tiago Correia, professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, começa por dizer que não põe em causa a transmissibilidade desta variante. E enumera uma série de acções: esta variante estava descrita desde Setembro; o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, já tinha esta informação; tinha sido altamente criticado e pressionado pelas autoridades científicas inglesas por ter permitido a abertura do país no Natal e Inglaterra estava entre os países com maior permissibilidade nos agrupamentos familiares; mesmo assim, o primeiro-ministro manteve a sua posição; dias depois tudo parece ter mudado.

“Não houve nenhuma evidência académica nova que tenha surgido durante esta semana que explique esta subida de atenção”, assinala. O que aconteceu então? “O que aconteceu foi uma pressão científica no espaço público e político para que aquela decisão não fosse avante.” Portanto, para o investigador, esta escalada de atenção “foi muito mais consequência de uma inabilidade política do que um facto científico novo desconhecido até agora. Houve uma escala de atenção e pânico que não acompanha a evidência científica.”

As restrições à entrada de passageiros vindos de Inglaterra serão relevantes?
“São pouco relevantes, porque se o vírus já está em circulação. Se já está descrito desde Setembro e se já está identificado num conjunto de países, restringir os voos vindos de Inglaterra parece-me pouco relevante”, considera Tiago Correia.