Cara a cara com o conflito colombiano
A Médicos Sem Fronteiras está a levar cuidados de saúde a comunidades vulneráveis encurraladas num ciclo de violência, quatro anos após o processo de paz na Colômbia.
Nas regiões das águas paradas na costa do Pacífico na Colômbia, o remédio local para a mordida de cobra venenosa custa tanto quanto um caixão.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Nas regiões das águas paradas na costa do Pacífico na Colômbia, o remédio local para a mordida de cobra venenosa custa tanto quanto um caixão.
“Podes escolher: a cura ou o caixão. De qualquer forma, terás de pagar”, explica Francine (nome fictício), sentada no alpendre de madeira. A casa desta curandera idosa fica à beira de um rio castanho que desagua no cinzento Oceano Pacífico, à distância de pelo menos um dia de viagem, rio abaixo, numa canoa com motor fora de borda.
Em muitas partes do rio, as margens estão cobertas de arbustos rasteiros – plantas ainda jovens destinadas às plantações de coca que se espalham pelas planícies vizinhas –, num pontilhado entre a selva, as bananeiras e os inhames.
O negócio de Francine depende, em boa parte, de existirem muito poucas alternativas de cuidados de saúde neste canto remoto da Colômbia. O posto médico mais próximo está a seis horas de distância, numa canoa a motor. A gasolina escasseia ou é muito cara e, mesmo que se consiga uma boleia, grupos armados patrulham aquelas águas e podem não deixar os habitantes fazerem a viagem.
Demorei dois dias para ali chegar: um dia inteiro de carro, por estradas esburacadas e lamacentas, e, depois, duas viagens de canoa e uma caminhada pela selva.
Estou nesta região a trabalhar com a Médicos Sem Fronteiras (MSF), integrado numa equipa que leva cuidados de saúde até aldeias ribeirinhas. A equipa médica e de enfermagem está atarefada numa clínica improvisada no edifício abandonado de uma escola... Mas só após debater o que fazer com os numerosos ninhos de vespas pendurados no tecto. A equipa e os nossos contactos locais estão divididos: os que defendem que se ignorem as vespas, que já voam por todo o lado, e quem ache ser melhor afugentá-las com fumo.
“Deixem-nas estar e elas não picam”, argumenta alguém. É essa a estratégia que adoptamos e passamos, assim, os próximos dias com os enormes insectos castanhos a voarem à nossa volta.
Logo no dia seguinte surgem caras novas na aldeia: um grupo de homens com ar duro sentados em cadeiras de plástico num baldio. Faço-me de convidado e junto-me a eles para conversar sobre assuntos de saúde.
De início parecem-me desconfortáveis, mas passado pouco tempo já estamos à conversa sobre os alimentos locais e sobre o borojó, um fruto da selva que é vendido como afrodisíaco nas cidades colombianas e que, para as comunidades locais, é um alimento básico muito rico em vitaminas.
Mais tarde nessa noite, vejo o mesmo grupo de homens sentados nas mesmas cadeiras, mas agora a empunharem metralhadoras. Claramente é um grupo armado. Terei agitado um ninho de vespas?
Depois do jantar, passamos por eles a caminho de nos irmos lavar no rio. Os guerrilheiros gritam-nos uns alegres “buenas noches”. Por agora, tudo bem.
Estes homens armados parecem sentir-se em casa na aldeia, mas é difícil avaliar como os habitantes locais os vêem. A presença do grupo deve-se às plantações de coca que, a espaços, são erradicadas por tropas estatais que surgem repentinamente de helicóptero. Os homens armados estão ali também para defender a zona da investida de outros grupos.
Aquele grupo armado local é um remanescente das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) que rejeitou o processo de paz e continua a lutar pelo domínio do território nas zonas fronteiriças ao Equador. Mas manter o controlo das vastas plantações de coca e dos laboratórios escondidos nunca é fácil. Outros grupos dissidentes estão em pé de guerra e já eclodiram combates rio acima.
As equipas da MSF chegaram a esta zona pouco após agricultores locais, os campesinos, terem sido forçados a fugir para a selva, sob a mira das armas, e regressado depois para encontrarem as casas pilhadas, colheitas destruídas e os corpos desmembrados das vítimas dos combates enterrados aos bocados por toda a aldeia.
“Foi um acto de terror com carga simbólica”, descreve-me o companheiro de equipa Samuel. “Transformaram a aldeia em cemitério.”
A MSF mobilizou uma equipa médica e de psicologia para a aldeia. A saúde mental é um problema enorme na sequência de incidentes violentos. E estes estão a aumentar.
O muito elogiado processo de paz de 2016, entre o Governo e as FARC, mal se sente ali. E a sua fraca concretização pode até ter tornado tudo pior, uma vez que grupos fragmentados por toda a região costeira do Pacífico lutam pelos despojos deixados pela guerrilha.
Massacres e deslocações populacionais ocorrem todos os meses e os isolamentos forçados, combates e assassinatos são constantes por trás da cortina do conflito.
Samuel lidera a equipa MSF que agora visita esta área. Tem um conhecimento sólido da geografia e do contexto locais; eu perco-me na sopa de letras dos grupos armados: GUP, FOS, ELN, AGC, E30FB, Frente 30, e ainda Los Cuyes e Los Contadores.
Nos dias seguintes, enquanto a equipa médica trabalha a tentar esquivar-se das vespas na clínica, eu vagueio pela comunidade conversando com curandeiros espirituais que tratam o mau-olhado, com yerbateros (ervanários) que tratam a malária usando plantas locais e com um cosero – “cosedor” – que costura ferimentos ao preço de 20 mil pesos por ponto.
A maior parte dos adultos tem marcas de ferimentos, frequentemente causados por machetes afiados, e nem todos são acidentes. O alcoolismo e as disputas domésticas são comuns nestas comunidades ribeirinhas.
Numa das salas da clínica, crianças empoleiradas em periclitantes cadeiras de escola pintam numas folhas fotocopiadas que a psicóloga da MSF trouxe com ela, junto com lápis de colorir. “Isto mantém-nos ocupados enquanto as mães esperam para serem atendidas na clínica”, explica.
Sem planeamento familiar nem serviços de saúde reprodutiva, muitas mulheres têm cinco filhos ainda na casa dos 20 anos, e estão desesperadas pelos implantes anticoncepcionais que podem impedir a gravidez durante cinco anos.
Há crianças por todo o lado, ocupadas numa fascinante variedade de brincadeiras. Algumas fazem helicópteros com paus e folhas que lançam a espiralar pelo ar. Outras giram piões feitos à mão ou correm pela aldeia atrás de rodas de bicicleta – numa versão do “aro e vara” dos livros ilustrados da era vitoriana.
Fico a olhar para um grupo destas crianças – nenhuma com mais de oito anos – que leva uma canoa rio acima usando pedaços de madeira como remos. Outras andam pela parte rasa a caçar caranguejos. Imagino que o idílio tenha vida curta. É esperado que os adolescentes colham a coca nas plantações, que podem ficar a várias horas de barco da aldeia. E das adolescentes é esperado que comecem as suas famílias aos 15 anos. É também com essa idade que os grupos armados vêm à procura de voluntários.
Por agora, os grupos não estão a recrutar crianças à força, conta o professor local. Mas aderir a um grupo armado é atractivo para os jovens impressionáveis que não têm muitas alternativas. Manter as crianças longe do conflito é uma luta muito difícil. “Todas as semanas, tento convencer as famílias a manterem as crianças na escola”, conta.
A estratégia mais bem-sucedida é o futebol; por isso, no tempo livre, o professor treina quatro equipas – duas de rapazes e duas de raparigas – e organizou um campeonato com outras aldeias, contando com donativos para comprar bolas e redes. “Os mais novos gostam muito de jogar e de competir e isso mantém-nos mais próximos da escola e longe de outras influências”, avança ainda.
Na clínica improvisada pela MSF, os pacientes fazem fila e as crianças continuam a colorir. Enquanto me ausentei, um aldeão veio travar guerra com as vespas, borrifando os ninhos com produtos químicos. Os insectos fumigados estão mortos pelo chão. Algumas das crianças abandonaram as folhas de papel para apanhar as vespas e pô-las em fila, com as asas cuidadosamente dobradas. Aquela coexistência chegou ao fim.
Os homens armados estão agora a beber rum junto ao salão de bilhar, olhando para os telemóveis de última geração. Pergunto-me por quanto tempo coexistirão ali até que grupos rivais apareçam para lhes roubar o controlo das plantações de coca.
E esse dia pode chegar em breve, explica-me o líder da equipa MSF, Samuel, a apontar para o mapa. Outro grupo dissidente das FARC, a Frente 30, está a movimentar-se desde os Andes rumo à selva e aos rios. Na trajectória actual poderá chegar à aldeia dentro de pouco tempo.
Claro que uma trégua pode prevalecer. Mas o mais provável é que ocorra mais conflito, com as comunidades aterrorizadas e isoladas nas aldeias. E com ainda menor hipótese de conseguirem deslocar-se a um hospital.
Isto faz com que o objectivo da MSF em instalar equipas de saúde nestas aldeias seja ainda mais urgente. É um enorme desafio no conflito actual. O ninho de vespas está à espreita.