Funerais covid-19: “É possível a gente despedir-se dignamente”

Nove meses depois da primeira morte com covid-19, Portugal aproxima-se das seis mil. Os funerais covid-19 fazem-se sob fortes restrições, mas não como no princípio. No funeral da irmã de João só podiam estar três pessoas, no da avó de Andreia já deixaram entrar dez, no do companheiro de Cristina participaram várias dezenas

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Entrada para a vigília Paulo Pimenta

Chamava-se Fernando. Familiares e amigos, isolados ou em pequenos grupos, alongavam o olhar até ao jazigo da família. Uma violoncelista tocava Ave Maria de Schubert, Hallelujah de Leonard Cohen, My way de Frank Sinatra. Uma equipa de vídeo transmitia a cerimónia em directo pela Internet para que outros, com palavra-chave, pudessem assistir àquele momento.

Recuando um ano, ninguém adivinharia. Fernando estava bem. De repente, tudo se precipitou: um inchaço em Novembro, uma biópsia em Dezembro, um diagnóstico de cancro de pele em Janeiro, tratamentos, uma cirurgia ao cérebro em Julho, mais tratamentos, dores, mais dores, o anúncio do fim em Novembro. Sexta-feira, 13, metástases por todo o lado. Quinta-feira, 19, covid-19. Domingo, 22, morte.

Daniel, o irmão, quis organizar a despedida. Tem uma amiga na Agência Funerária Pátria, no Porto, integrada na multinacional Servilusa. “Vou buscar o fato e entrego-te”, disse-lhe Cristina, a mulher com quem Fernando partilhara os últimos nove anos. “Quero que esteja bonito. Ele sempre foi bonito.” Imaginava uma cerimónia de caixão aberto. “Não pode ser”, avisou o cunhado.

A família nem vê o corpo de quem morre com covid-19 num hospital. O corpo nu é enfiado num duplo saco impermeável. Os funcionários da agência – protegidos com luvas cirúrgicas, bata e/ou fato, cobre-botas, touca cirúrgica, óculos de protecção, como os médicos e enfermeiros – acomodam-no na urna e selam-na. Ninguém pode reabrir o caixão. Estão vedadas quaisquer práticas de tanatopraxia ou outras operações destinadas a melhorar o aspecto do cadáver. Não é permitido fazer velório.

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“A Direcção-Geral da Saúde aconselha a cremação e nós respeitamos isso”, esclarece Daniel. Sendo Fernando evangélico, a companheira católica e as filhas ateias, pareceu-lhe que uma cerimónia religiosa introduziria “ruído”. Um acto laico, mas quando? “Torna-se difícil compreender qual o momento certo.”

A amiga sabia aconselhar. Muita experiência se acumulara desde que, no dia 16 de Março, morrera o primeiro paciente com covid-19 em Portugal. O número de mortes fora crescendo a um ritmo variável. No dia em que Fernando morreu, Portugal registou 74. O país acumulava 3971. Decorridos nove meses desde o primeiro caso, aproxima-se de seis mil.

Três pessoas apenas

Já não era o desnorte dos primeiros tempos. A ocasião estava reservada a um número muitíssimo restrito de familiares directos – algumas autarquias permitiam três, outras cinco, outras dez. Houve quem tivesse sido sepultado como um indigente, apenas na presença de quem prestava o serviço fúnebre, por ter os familiares mais chegados em isolamento. 

Havia quem pudesse fazer comparações naquele dia, naquele cemitério construído no século XIX na sequência de uma crise sanitária – no Cerco do Porto, em 1833, uma epidemia de cólera esgotou os locais de enterramento, a Irmandade da Lapa pediu a D. Pedro IV permissão para construir um cemitério privado e fê-lo seguindo o modelo parisiense: muralhado, com portão de ferro, espaço para monumentos.

O paralelo não saía da cabeça de João, que perdera a irmã no dia 4 de Abril. Desde que a pandemia chegara, não podia estar com ela, via-a por vídeo-chamada. Houvera um surto no lar residencial para pessoas com deficiência que a acolhia desde que a mãe morrera, havia 12 anos. Fora internada nos cuidados intensivos do Hospital Santo António. Volvidos cinco dias, expirara.

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Corpo a ser removido do hospital, já dentro de urna Paulo Pimenta

O corpo saiu dali para o crematório. As missas e outras cerimónias religiosas estavam suspensas, mas nada obstava que, com as devidas distâncias, se realizasse o rito de Última Encomendação e Despedida, ao ar livre, no cemitério onde as cinzas seriam depositadas. À hora marcada, João estava à entrada com o irmão e o presidente da instituição. Abriram o cemitério de propósito. Nem vivalma lá dentro. Um silêncio denso, pesado.

A palavra que mais lhe ocorre cada vez que pensa naquele momento é “estranho”. A funcionária da agência trouxe a pequena urna com as cinzas. Tocaram-lhe. “Eu e o meu irmão nem nos abraçámos com medo da covid.” Foi tudo muito rápido. Jazigo aberto, cinzas depositadas, jazigo encerrado. “Nem tivemos cinco minutos. Fomos lá para fora e aí, sim, estivemos um bocado a olhar para dentro do cemitério, já fechado, em silêncio.” A distância não era só física, também emocional. “Parecia que não nos conhecíamos.” Ajudou a posterior ida ao mar. João e o irmão demoraram-se no preciso sítio em que costumava levar a irmã. “Foi mais íntimo. Foi importante para nós, mesmo em silêncio, estar ali.”

Ainda lhe pesa não ter tido velório, missa, cortejo fúnebre, em suma, a despedida prolongada, a dor partilhada com as pessoas mais significativas. Os rituais fúnebres têm um papel. Não é por acaso que se realizam desde tempos imemoriais. “Ainda não fiz o luto. Ainda não me convenci de que a minha irmã partiu.” Às vezes, surpreende-se a organizar o dia livre como se ainda a pudesse ir buscar. Estar ali, na homenagem a Fernando, ajudava-o a interiorizar. E a perceber que precisa de um ritual. Quando tudo terminar, há-de organizar uma despedida na praia.

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O dever de protecção

Seguindo as regras emitidas pela DGS, o corpo de Fernando também fora acondicionado em duplo saco, colocado numa urna, selado e identificado como risco biológico. Estivera numa arca frigorífica e seguira para o crematório, pela mão de homens que pareciam, como dizia um deles, astronautas. No exterior da Igreja de Nossa Senhora da Lapa aguardavam alguns familiares e amigos.

 “Vi-o a semana passada. Vi-o três vezes, sempre com máscara”, comentava Daniel, sem se esquecer de esclarecer que fizera o teste e dera negativo. “O período de cancro foi acompanhado à distância – por Zoom, Face Time. Quando é uma situação de cancro em que surge covid ninguém está perto.”

Os pais não se encontravam com Fernando desde Março. Todos tentaram respeitar o especial dever de protecção que se impõe a maiores de 70 anos e a doentes oncológicos – e a imunodeprimidos, portadores de doença respiratória ou de doença crónica (como os hipertensos, os diabéticos ou os doentes cardiovasculares).

Uma atenção permanente. “Todo o cuidado e mais algum.” Cristina ia buscar as compras, levar o lixo. Desinfectava-se “da cabeça aos pés”. Fernando mal saía de casa. “Quando estávamos com alguém era ao ar livre”, diz ela. “As filhas, que iam almoçar lá a casa, deixaram de ir porque andavam na escola.” Vira-as no dia 14 de Setembro, ao celebrar 50 anos. “Conseguimos fazer um jantarinho num restaurante sem mais ninguém. Tanto cuidado que tivemos com a porcaria da covid…”

Está convencida de que Fernando apanhou o vírus no Instituto Português de Oncologia do Porto. Havia um surto. Começara na ala de cirurgia oncológica, no piso 8. Nesses dias, deslocaram-se àquela unidade várias vezes. Vira uma mulher infectada, desorientada, a deambular pelo edifício. No dia 19, voltou, com Fernando dobrado pela dor. O teste feito à entrada deu positivo.

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Pai e irmão a entrar na sala da vigília. Paulo Pimenta

Tudo acelerou. “Eles disseram que não iam ficar com ele. Iam transportá-lo para outro hospital. Nunca mais o ia ver.” Ele ainda estava consciente. Saiu da sala a dizer: “Kika, covid, não te aproximes.” E ela retorquiu: “Vou estar contigo.” Esteve ela e Célia, uma prima que era uma espécie de irmã. “Ele teve muito amor toda a vida. Não ia deixar que partisse sem amor. A única coisa que lhe podia dar era amor.”

Conheceram-se num jantar de Natal. Cristina a trabalhar numa empresa, Fernando noutra, o mesmo restaurante, “um trocar de olhares”. Naquela noite, os dois grupos fundiram-se, indo dançar e tomar copos numa discoteca da moda e ela apaixonou-se por ele. Resistiu à tentação de o procurar, porque ele vivia com a segunda mulher. Volvidos dois anos, o Natal tornou a juntá-los. “Estou a jantar com os meus colegas e sinto uma mão: ‘Esta dança vai ser minha.’” Tornou a domar a vontade. Contactos reduzidos – “bom Natal”, “bom ano”, “feliz aniversário”. No dia 8 de Julho de 2011, ele telefonou-lhe: “Se quiseres, podemos ir jantar.” Separara-se meses antes. “Desde o dia 9 de Julho, nunca mais nos largámos.” Nem quer imaginar como será o Natal, agora.

Sabia que ele estava a morrer. A médica dissera-lho. Pensava que morreria em casa, ao pé dela, a segurar-lhe a mão. Sábado à noite, 21, agonizava. Para o poupar àquele sofrimento, chamaram o 112. “Põe-te fino!”, disse-lhe o irmão quando ele entrou na ambulância, já sem saber se ele o ouvia ou não. “Oxigénio e soro e estás pronto para fazer um jogo comigo e com o Simão e o Miguel.”

Já dentro do Hospital Pedro Hispano, Cristina despediu-se, dizendo-lhe o quanto o amava, o quanto fora feliz com ele, o quanto estava grata pelos nove anos de vida comum, o quanto lamentava não se terem conhecido antes. Não sabe se ele a ouviu, mas ficou com a impressão que sim. “O rosto dele serenou.” Ao ouvir Daniel falar nas restrições, pensou: “Nem lhe vou poder fazer uma homenagem em condições.”

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Corpo é levado para o crematório. Paulo Pimenta

Estratégias para fazer luto

As medidas foram-se tornando menos rígidas. Os funcionários da Servilusa, dona daquele crematório, sabiam-no. Pelo seu trabalho e, nalguns casos, até pela sua experiência pessoal. Andreia, administrativa numa das lojas, tivera de organizar o funeral da avó, que morreu a 13 de Maio.

Com um cancro no peito, a avó estava desde o final de Abril internada no Hospital Pedro Hispano e apanhara covid-19. Ia nos 85 anos. Tivera tempo de dizer o que queria. E queria velório, missa, cortejo fúnebre, funeral. Queria que o seu corpo fosse sepultado no mesmo cemitério que o marido.

“O nosso maior receio era ter de fazer uma cremação”, recorda Andreia. O número de participantes continuava a ser decidido pelas autarquias, mas o primeiro-ministro já chamara a atenção para os excessos a que se chegara nalgumas partes do país, frisando que não se deve limitar a participação de familiares, que há que permitir o último adeus. “As notícias iam saindo em catadupa. Estávamos com dúvidas se só deixariam entrar três pessoas. Pedíamos que deixassem pelo menos os quatro filhos estar presentes. Acabámos por estar dez no exterior sem saber se íamos entrar.”

Uma vida inteira no comércio. Tivera uma mercearia. “Era muito conhecida na rua.” Não fosse o coronavírus, teria uma cerimónia concorrida. Assim, estiveram os quatro filhos, dois genros, quatro netos. Nem os irmãos, idosos, residentes na Régua, puderam estar. “Felizmente conseguimos que o senhor padre fizesse uma cerimónia no cemitério. Ele estava ao centro e nós dispersos. Aquele toque, aquele abraço, tudo isso ficou comprometido”, reconhece. Com o tempo, foram encontrando estratégias de lidar com aquela perda, aquela dor, aquela saudade e encontrar um reequilíbrio naquela ausência. “Fizemos a missa de sétimo dia, de um mês, de seis meses. Fazemos tudo o que é permitido e sabemos que ela iria gostar.”

Permitem-se vigílias curtas, ainda que com caixão fechado, no dia da cremação e/ou do enterro. Durante cerca de uma hora, alguns familiares e amigos de Fernando revezavam-se para não serem mais de dez de cada vez na sala. O som do violoncelo percorria o corredor e alcançava o exterior, onde iam aguardando, ao frio. Alguns liam uma brochura com fotografias antigas e textos novos sobre Fernando.

Os quatro homens protegidos da cabeça aos pés voltaram a pegar na urna. Meteram-na no forno crematório. E, horas depois, mesmo ali ao lado, no cemitério da Venerável Irmandade da Nossa Senhora da Lapa, as cinzas foram depositadas no jazigo dos avós, Guilhermina e Fernando.

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Funcionária da agência transporta pequena urna do crematório para o cemitério. Paulo Pimenta
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“Fizemos uma pequena brochura, que podem levar, onde falamos sobre a alegria que foi tê-lo connosco”, discursou Daniel. Partilhou histórias, como a do Natal em que ambos decidiram fazer uma surpresa aos pais, organizando uma espécie de concurso “Um, dois, três” e oferecendo-lhes um carro novo.

Cristina também falou. Não se coibiu de ali estar, junto à prima, de máscara, mantendo alguma distância física das pessoas. “É possível a gente fazer alguma coisa, é possível a gente despedir-se dignamente”, concluiu. Não estava na primeira fase do luto, a negação. Reconhecera a morte a aproximar-se – já perdera o pai, a mãe e a irmã para o cancro. Estava na da raiva. Sentia aquela morte, a do grande amor da sua vida, como um roubo. Dias depois, quando o resultado do teste chegou negativo, sentiu-se a receber “um sinal”. E isso abriu a porta à fase da negociação, que antecede a da depressão e a da aceitação. 

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Cerimónia termina. Paulo Pimenta