Traição das classes cultas angolanas
Nos nossos dias o que se observa em Angola é uma sociedade dividida entre vencedores e vencidos, amedrontada e assassinada por um Partido capitaneado por homens sem um pingo de escrúpulos.
Não é minha intenção fazer aqui um julgamento. Habituado a estudar fenómenos históricos e a tentar perceber as dinâmicas de evolução das sociedades e o comportamento dos homens em grupo, somente me move o propósito de nesta reflexão deixar registada uma constatação: a inteligência angolana (simbolizada pelas suas camadas pensantes) já não é a mesma de há uns tempos a esta parte. Transmutou-se, perdeu densidade, é menos profunda, tornou-se imobilista, deixou-se aprisionar pelos tentáculos do poder político.
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Não é minha intenção fazer aqui um julgamento. Habituado a estudar fenómenos históricos e a tentar perceber as dinâmicas de evolução das sociedades e o comportamento dos homens em grupo, somente me move o propósito de nesta reflexão deixar registada uma constatação: a inteligência angolana (simbolizada pelas suas camadas pensantes) já não é a mesma de há uns tempos a esta parte. Transmutou-se, perdeu densidade, é menos profunda, tornou-se imobilista, deixou-se aprisionar pelos tentáculos do poder político.
A minha constatação, confesso, é algo parecida com a de Max Aub, escritor espanhol (1903-1972), que no seu Diário Espanhol (escrito anos depois de se exilar no México fugido da ditadura de Franco) se perguntava estupefacto acerca de Espanha: “Vejo moinhos ou vejo gigantes?”.
Tinha razão o autor do Labirinto Mágico para tanto estranhamento. Que país era aquele (revisitado por ele em 1969) com o qual já não se identificava? Que transformações se haviam operado na índole dos espanhóis, dos seus escritores, pensadores e demais artesãos da palavra, de tal maneira que já não se falava nem se escrevia tão bem como dantes? Onde estava a poderosa energia dos seus intelectuais, do porte de um Benito Pérez Galdós (em cujos livros várias gerações de espanhóis tinham aprendido a ler); de um Miguel de Unamuno, de um António Machado, de um Juan Rámon Jiménez e tantos outros? Teriam sido as mordaças da ditadura franquista e da Igreja Católica as responsáveis pelo elanguescer da alma espanhola, pondo as suas gentes a falar uma “língua anémica”? Teriam sido essas mordaças que feriram os espanhóis no âmago da sua rebeldia e fulgor de pensamento? Para o escritor não havia qualquer dúvida quanto às causas desta degenerescência cultural. “Não há camaleão que mude de cor assim tão depressa”, exclamava Aub, tomado por sentimentos de pesadume[i].
As minhas interrogações a respeito de Angola vão na mesma direcção do escritor espanhol. Que aconteceu às camadas pensantes nativas e às suas inclinações primordiais de combate humanístico em prol de uma sociedade política e socialmente mais justa, mais solidária e preocupada com as profundas mazelas do seu povo, hoje a viver nos estreitos limites da sobrevivência? Que aconteceu ao certo, de desastroso, para se ver esta classe perdida de si mesma, despersonalizada?
Nos nossos dias o que se observa em Angola é uma sociedade dividida entre vencedores e vencidos, amedrontada e assassinada por um Partido capitaneado por homens sem um pingo de escrúpulos. Apenas empanturrados de dinheiro e conforto enquanto as brechas que separam os grupos sociais entre si aumentam vertiginosamente. Uma sociedade triste, ancilosada, amarfanhada pela ditadura e sem capacidade de reacção. As ideias políticas rarefazem-se no vácuo e em poeiras de informações dispersas e obscuras, sem nenhum outro sentido que não sejam palavras de ordem. Basta ler os periódicos e o que se vai editando. Um deserto total de ideias, textos sem importância, em geral paupérrimos no seu conteúdo. Entretanto, a vida em sociedade flui sem percalços e a contestação política episódica, quando se dá, logo morre nas praias do torpor e da resignação. O que predomina é o espasmo da indiferença e esta, como dizia o filósofo marxista Antonio Gramsci, “opera com força na história”. É a “matéria bruta” diante da qual a inteligência claudica[ii].
Faz tempo que as elites culturais angolanas soçobraram na indiferença. Apoderou-se delas uma espécie de cegueira para com a realidade que as cerca. Imersas em paixões partidárias e despojadas de motivações éticas, esta classe desvinculou-se de compromissos com as grandes causas. Desvinculou-se dos avanços sociais da democracia e da justiça; desvinculou-se do compromisso de lutar pela descolonização das mentes, de lutar pela construção de uma consciência colectiva e por uma sociedade mais humana e eticamente responsável. Mas, acima de tudo, desvinculou-se de ajudar a edificar uma sociedade mais harmónica e progressista e, como tal, insuflada por valores virtuosos e não pela depravada ganância material introduzida em Angola pelas apodrecidas castas oligárquicas do MPLA.
Ao voltarem costas a estes árduos desafios, jornalistas, literatos, académicos e estudiosos em geral enrouparam-se com as insígnias do cinismo e submeteram-se aos interesses do Partido-Estado e aos seus condicionamentos. Iguais a um enxame de moscas, tais elites gravitam em volta do Poder e como serviçais emprestam o seu silêncio aos poderosos e efabulam a realidade com os seus escritos. Numa palavra, enquistaram-se no papel de cúmplices das políticas de esquecimento e impunidade, desde sempre dois traços dominantes e persistentes nos governos do MPLA. Um recuo civilizacional esta cedência, se nos lembrarmos que tanto o esquecimento como a impunidade são responsáveis pela continuação dos ciclos de violência.
A este gesto de abdicação da verdade, chama o poeta espanhol Rafael Sánchez Ferlosio de “íntima e tenebrosa complacência com o fatal”. Desprezam-se os supremos reptos do destino em favor de gestos de renúncia por meio dos quais se deixa de “empunhar a espada da responsabilidade”[iii]. No seu lugar adopta-se uma cultura de despudorada indiferença e servilismo na relação com os donos do poder. Uma postura de sujeição à sombra da qual se tapam os olhos diante da incompetência e da imoralidade dos governantes com as suas repetidas indecências e falsidades.
Em vez de utilizar a arma da escrita e das artes como um poderoso instrumento de acção transformadora, a maioria da intelligentsia angolana caminha em sentido oposto aos grandes valores da civilização pregados desde a Grécia Clássica. Quando não se omite diante dos padrões de dominação e violência do MPLA, alinha abertamente e sem pruridos com este partido e presta-lhe uma “vassalagem cortesã”. Então, é vê-la pródiga em ilusionismos discursivos a irrigar as suas matérias jornalísticas e literárias com palavras eufemísticas, mas simbolicamente reveladoras da sua capitulação frente ao reaccionarismo dos novos-ricos do Poder.
Mesmo que o queira negar, esta categoria pensante é co-responsável pelo falhanço do processo histórico comandado pelo Partido dominante. Ela ajudou a plantar as sementes do descalabro nacional que se avizinha a passos rápidos. O que de funesto tem ocorrido em Angola, não é só culpa da má governação. Ocorre porque os jornalistas e outros “plumíferos” abdicaram da sua vontade e perfilaram-se contra a libertação do seu povo e contra todas as conquistas universais do conhecimento. Desistiram de participar depois da independência nacional do grande movimento de mudança da história, de construir o país em liberdade. Acomodaram-se no papel de escribas sentados, para usar uma metáfora de Manuel Vásquez Montalbán, romancista e ensaísta espanhol (1939-2003). Uma condição que lhes confere, inegavelmente, a vantagem de manejar um código com o qual ajudam a “perpetuar o sistema”[iv]. A sua função de “servos ilustrados” ao serviço do ditador impõe-lhes a obrigação de reproduzirem a cartilha do MPLA e de glorificarem esta organização política, exactamente com a mesma linguagem do Partido. Todavia, a semântica que exercitam não lhes pertence. Tem dono, o MPLA.
Ou seja, o Partido aproveita o concurso desses ventríloquos para promover a figura do Líder, cinzelá-lo com as tintas de salvador e entronizá-lo no seu poder absoluto. O MPLA (por meio dos seus dispositivos de Estado) usa o medo e a pusilanimidade desses sacerdotes da escrita para reprimir a criatividade política e cultural e cooptá-la. Manipula e destrói o espaço de informação nos jornais e noutros órgãos de comunicação social, impõe medidas de censura, dissolve valores contrários ao Partido e estabelece narrativas de domínio total sobre a colectividade nacional. A “informação” em Angola só tem valor se corresponder aos pronunciamentos do ditador e aos comunicados do Partido.
Uma dúvida que persiste é se estes escribas se beneficiam directamente do regime pelas suas qualidades pessoais, ou se as mercês que recebem lhes advém de terem parentes e padrinhos muito bem colocados no Partido e no Estado. Seja como for, são raros os escribas que, em retribuição pelos seus serviços, se sentam à mesa no palácio a provar os manjares do Soberano. No reinado de Agostinho Neto houve um que gozava desta prerrogativa: Costa Andrade, vulgo “Ndunduma”, director do Jornal de Angola, que passava então por ser o escriba-mor do regime. Gozou de títulos de distinção. Ia pessoalmente ao palácio conviver fraternalmente com o amo e receber dele instruções sobre o que deveria escrever. As notas, os editoriais e outras barbaridades que despejou naquele pasquim no período que antecedeu o 27 de Maio, e depois no vendaval das chacinas de Estado que se seguiram, foram-lhe ditadas por Neto. Foi assim também com José Eduardo dos Santos no seu relacionamento com outros escribas e parece que continua a sê-lo com o actual autocrata.
Digamos que em momento algum se viu um director, editor e repórter dos jornais, rádios e televisões, dedicar algum espaço ou atenção às pessoas e às comunidades sociais e políticas não identificadas com as doutrinas e a práxis do MPLA e do seu governo. Ignoram-nas em absoluto. São segmentos da sociedade que não existem para a mídia em geral. Do mesmo modo se ignoram as vozes que ousam divergir do regime político, excepto quando as elegem como alvo das suas linhas de fogo. Contra essas vozes desatam-se campanhas execráveis de calúnias e outros procedimentos desprezíveis de modo a assassinar o carácter da pessoa visada.
Honra seja feita a Carlos Ferreira e a Nok Nogueira enquanto presidiram aos destinos do Novo Jornal. Um e outro tiveram o mérito de resistir ao clima de intolerância prevalecente no país. Neste mesmo combate de resistência contra o obscurantisno enfileiram os semanários Folha 8, Expansão e O Kwanza. No mais, porém, nada se alterou. As vozes dissidentes e as lutas contraculturais continuam relegadas à condição de fantasmas. São fenómenos tratados como não-existentes ou como símbolos de forças obscuras que, segundo o regime, estão apostadas em socavar o grande projecto de “redenção” nacional liderado pelo MPLA. Somente as vozes fiéis a este Partido e à sua cultura gozam de importância e do direito a um microfone ou a uma página de jornal para se fazerem ouvir.
Nunca se viu, em resumo, do lado da imprensa, dos escritores e artistas uma reflexão e um exercício de sistematização sobre a arquitectura de morte e terrorismo de Estado e outras sequências demoníacas praticadas pelo regime do MPLA. Por toda a parte, em desfiladeiros, barrancos, florestas e areais, jazem ossos perdidos de milhares de vítimas abatidas pelos homicidas do MPLA. Nenhum desses plumitivos, porém, se preocupou alguma vez em discutir até quando durará o silêncio criminoso do governo e do Partido em cumprir a exigência moral de se dar um túmulo a esses cadáveres a fim de se lhes devolver a dignidade, a cidadania. Apequenados nas suas misérias humanas, permanecem enroscados num labirinto de cumplicidades e num patológico absentismo e obediência ao Golias chamado MPLA, aceitando que este Partido continue a fazer do país um seu enclave autoritário.
Arrepia-me comprovar esta realidade. De haver uma parcela significativa da intelligentsia angolana que mira de forma leviana o fundo da tragédia nacional e não se sobressalta. Pelo contrário, conforma-se. A indiferença tomou conta da vida desses “clérigos da traição”, conforme os crismava Julian Benda, pensador francês[v]. A filosofia da liberdade com os seus valores mais sublimes nada diz a esse grupo. Há muito que se auto-amordaçaram de modo a evitar incómodos. Preferem levantar “sacos de areia” em torno de si e serem omissos. Isto é, serem dirigidos como autómatos por quem os governa. Calam-se diante de todas as infâmias, diante das irracionalidades e opressões do regime. Relegam tudo para os alçapões do esquecimento. Até no que se refere ao vergonhoso clientelismo partidocrata ostensivamente instalado no interior do aparelho de Estado, nenhuma impugnação se faz ouvir. Sequer os abala saber que estão a legitimar crimes atrozes e a cooperar na obra sinistra de propagação da ignorância entre as massas, fazendo-as acreditar que o MPLA e a sua direcção se compõem de uma galeria de pessoas impolutas e honoráveis que vieram para governar Angola ad aeternum.
O meu assombro perante tudo isto é imenso. Tanto mais porque me “causa calafrios pensar [como diria Jan Zábrana, poeta checo] ser este o atoleiro para aonde o glorioso partido conduziu o seu rebanho”[vi]. Custa-me realmente a entender. Cada um que responda com o sol da lucidez que lhe banha o espírito. Na minha perspectiva o futuro de Angola antevê-se sombrio.
[i] Max Aub. La Gallina Ciega. Diario Español [prólogo de Manuel Aznar Soler, Universitat Autònoma de Barcelona], Editor Digital Titivillus, 1971, p. 325.
[ii] Antonio Gramsci. Odeio os Indiferentes. Escritos de 1917 [selecção, tradução e aparato crítico de Dniela Mussi e Álvaro Blanchi], São Paulo, Boitempo, 1.ª edição, 2020, p. 11.
[iii] Rafael Sánchez Ferlosio. Vendrán Más Años Malos y Nos Harán Más Ciegos, Editor Digital Titivillus, 1993, p. 14.
[iv] Manuel Vásquez Montalbán. El Escriba Sentado, Barcelona, Crítica (Grijalbo Mondadori), 1997, p. 14.
[v] Julian Benda. La Traicion de los Intelectuales (La Trahison des Clercs) [traducción de L. A. Sanchez], Santiago de Chile, Ediciones Ercilla, 1951.
[vi] Jan Zábrana. Toda Una Vida, Tenerife, Editorial Melusina, 2010, p. 22.