Pais e filhos, ou retratos de um conflito por Marco Martins
Estamos mais uma vez, perante a família, melhor, perante o pai, no espectáculo que Marco Martins construiu para dois intérpretes: Beatriz Batarda e Romeu Runa.
Romeu Runa move-se sobre o palco com leveza, com uma delicadeza tensa, a magreza esculpida do corpo insinuando uma espécie de ansiedade, talvez a de quem procura um lugar seu, um sítio conhecido, mas não o encontra e interroga-se, confuso, sobre o seu paradeiro. Beatriz Batarda está por agora enredada numa dança convulsa, os movimentos grotescamente catárticos, braços e pernas disparados em todas as direcções, como quem procura um rumo ou pelo contrário foge de um destino, as palavras libertadas como estilhaços que tanto podem ser imprecações ou preces, mas sempre mais eloquentes quando ditas pelos corpos dos intérpretes.
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Romeu Runa move-se sobre o palco com leveza, com uma delicadeza tensa, a magreza esculpida do corpo insinuando uma espécie de ansiedade, talvez a de quem procura um lugar seu, um sítio conhecido, mas não o encontra e interroga-se, confuso, sobre o seu paradeiro. Beatriz Batarda está por agora enredada numa dança convulsa, os movimentos grotescamente catárticos, braços e pernas disparados em todas as direcções, como quem procura um rumo ou pelo contrário foge de um destino, as palavras libertadas como estilhaços que tanto podem ser imprecações ou preces, mas sempre mais eloquentes quando ditas pelos corpos dos intérpretes.
Aqui estamos, então, mais uma vez, perante a família, melhor, perante o pai, no espectáculo que Marco Martins (n. 1972) construiu para dois intérpretes e uma voz, cenografado por Fernando Ribeiro, iluminado por Nuno Meira e sonorizado por Sérgio Milhano como um território inóspito, barrado por um muro, digamos, simbolicamente totalitário, como tantas vezes são as relações entre pais e filhos, amiúde incapazes de lidar uns com os outros. Um espaço fechado, aqui e ali um objecto mais pessoal, mais humano, porém simples adereço, mesmo quando convoca memórias ou as sugere, quando as interroga e põe em causa a sua autenticidade, recorrentemente recordando essa incompreensão mútua que vai para lá do diálogo ou da ausência. Enfim, um petisco para psicanalistas.
Simples auxiliares, esses objectos pouco mais são do que servidores do mote, quase sempre originando frases, sequências de palavras achadas pelo encenador numa longa lista de autores – que tanto inclui Francis Bacon e Julian Barnes, como Sophie Calle, Siri Hustvedt, Franz Kafka e Édouard Louis, ou Peter Kubelka, George Oppen, Sylvia Plath, Richard Tuttle, Sófocles, Gonçalo M. Tavares, William Shakespeare, George Steiner, Manuel Vilas e Slavoj Zizek (que, por alguma razão, nunca pode faltar à chamada) – para melhor criar e expor uma biografia das personagens. Palavras escolhidas para ilustrar e acompanhar os sentimentos dos intérpretes, as suas recordações e maneiras de ver, umas vezes agora, outras retrospectivamente, umas como realidade, outras como ficção, mas sempre obrigando à entrega e ao despojamento de Batarda e Runa, essenciais na construção da dramaturgia.
Há, evidentemente, nesta construção dramática muito baseada na improvisação, uma considerável porção de incomodidade (a que se pode acrescentar algum hermetismo) que torna o desenrolar da peça algo penoso. Afinal, estamos a falar de (ou somos obrigados a pensar e confrontar) uma relação muito peculiar, um autêntico continente de contradições e aproximações, uma fonte de conflitos com a capacidade da caixa de Pandora. Não é um incómodo que se deixe para trás quando termina o espectáculo, até por dele remanescer a imagem daqueles corpos, daquelas personagens que se representam, representando também o outro que somos nós – e convocando espectros de uma relação a que ninguém sabe o que fazer.