Mozart e os desafinados
Mais de oito anos depois do caso da Loja Mozart, as relações entre a política e as organizações “discretas” continuam por regular, num Parlamento pouco sensível a conflitos de interesses.
A Assembleia da República debate esta sexta-feira um projecto de lei do PAN que propõe alterar o registo de interesses preenchido pelos detentores de cargos públicos, criando um campo facultativo sobre a pertença a organizações ditas “discretas”, como a Maçonaria ou a Opus Dei. Foi em Janeiro de 2012 que rebentou a controvérsia que ligava vários políticos, como o então líder parlamentar do PSD Luís Montenegro, à famosa Loja Mozart, que congregava também empresários e agentes dos serviços secretos. A iniciativa do PAN é a primeira proposta consequente feita desde então para regular minimamente as relações entre a política e este tipo de organizações, olhadas com cada vez maior desconfiança pelos cidadãos.
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A Assembleia da República debate esta sexta-feira um projecto de lei do PAN que propõe alterar o registo de interesses preenchido pelos detentores de cargos públicos, criando um campo facultativo sobre a pertença a organizações ditas “discretas”, como a Maçonaria ou a Opus Dei. Foi em Janeiro de 2012 que rebentou a controvérsia que ligava vários políticos, como o então líder parlamentar do PSD Luís Montenegro, à famosa Loja Mozart, que congregava também empresários e agentes dos serviços secretos. A iniciativa do PAN é a primeira proposta consequente feita desde então para regular minimamente as relações entre a política e este tipo de organizações, olhadas com cada vez maior desconfiança pelos cidadãos.
O custo reputacional da opacidade é reconhecido na quase totalidade dos pareceres sobre esta proposta, que podem ser consultados no site do Parlamento. Com a excepção da Comissão da Liberdade Religiosa e da própria Opus Dei, que argumentam pela inconstitucionalidade do projecto, os outros contributos reconhecem a necessidade de maior transparência por parte dos detentores de cargos políticos e altos cargos públicos. O Conselho Superior do Ministério Público propõe mesmo que este registo seja obrigatório e extensível aos procuradores da República, enquanto a Associação Sindical dos Juízes aprova a lei, aliás coerente com a posição da própria associação que considera a pertença a estas organizações eticamente reprovável, precisamente por suscitar dúvidas sobre a transparência e imparcialidade no exercício do cargo.
O constitucionalista Jorge Miranda, por sua vez, afasta problemas de inconstitucionalidade, dado que a lei não interfere na gestão de organizações privadas nem limita a liberdade dos responsáveis públicos aderirem e participarem nelas. Trata-se apenas de conciliar a liberdade de associação com a necessidade de transparência, “uma exigência de ética republicana”, como remata Jorge Miranda.
Esta discussão começou em 2012, à boleia do escândalo da Loja Mozart, mas nunca chegou a qualquer conclusão, o que é sintomático da forma desorganizada e casuística com que o Parlamento aborda a regulação de conflitos de interesses: muita polémica superficial, pouco estudo e nenhumas conclusões. Nunca se avaliou a forma como as regras de registo de interesses e de património dos políticos têm sido aplicadas, ou a eficácia dos controlos. Sem isso, os escândalos sucedem-se e a lei nunca consegue mais do que correr atrás do prejuízo, sempre de forma coxa e ineficaz.
Há problemas específicos a resolver no que toca à regulação da pertença a organizações “discretas”. Desde logo, é difícil encontrar uma definição jurídica para estas associações que seja clara e sem ambiguidades. Sem isso, o registo será inútil. Também é preciso discutir se um registo meramente facultativo resolve o assunto ou, posto de outra maneira, se para um registo facultativo é preciso alterar qualquer lei – nenhum político está hoje impedido de registar e publicitar a sua pertença a qualquer grupo ou associação, se quiser.
A melhor solução será, porventura, aquela que já existe: hoje, a Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa já obriga os membros do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações e da Entidade Fiscalizadora do Segredo de Estado a declararem “a filiação, participação ou desempenho de quaisquer funções em quaisquer entidades de natureza associativa”. Basta isto.
A participação em organizações colectivas dos mais diversos tipos não só não deve ter qualquer anátema associado como enobrece o percurso pessoal e cívico dos responsáveis públicos; e, como tal, deve ser assumida sem reservas e com orgulho – até porque, por hipótese, um político que tenha vergonha de pertencer à Maçonaria ou a qualquer outra associação é susceptível de ser chantageado, comprometendo o desempenho das suas funções. Por outro lado, o registo completo de todas as associações ou organizações a que se pertence – incluindo, por exemplo, clubes de futebol – permite às instituições e aos cidadãos fazer um mapeamento mais completo de reais, potenciais ou aparentes conflitos de interesses.
Seja como for, é útil que o trabalho se faça e que a proposta do PAN possa passar à discussão e melhoramento na especialidade. Portugal não pode ficar mais oito anos a fingir que este problema não existe, à espera do próximo escândalo.
Susana Coroado, presidente da Transparência e Integridade (TI-PT)
Luís de Sousa, ex-presidente da Transparência e Integridade e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
João Paulo Batalha, ex-presidente da Transparência e Integridade e consultor em políticas anti-corrupção