A linha que quer “abraçar as pessoas com as palavras” já atendeu mais de 50 mil chamadas
A Linha de Atendimento Psicológico foi criada a 1 de Abril, durante a crise sanitária, mas a ideia é que se mantenha, mesmo quando a pandemia acabar.
“O meu nome é Luís Pinheiro, sou psicólogo clínico, em que posso ajudar?”. Luís Pinheiro é apenas um dos 63 profissionais que estão do outro lado da Linha de Atendimento Psicológico (LAP) do SNS24 que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, e que está disponível para qualquer pessoa que queira falar sobre o que o está a perturbar naquele momento.
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“O meu nome é Luís Pinheiro, sou psicólogo clínico, em que posso ajudar?”. Luís Pinheiro é apenas um dos 63 profissionais que estão do outro lado da Linha de Atendimento Psicológico (LAP) do SNS24 que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, e que está disponível para qualquer pessoa que queira falar sobre o que o está a perturbar naquele momento.
“Em funcionamento desde 1 de Abril, a LAP atendeu, até ao dia 13 de Dezembro, 54.779 chamadas, das quais 4248 de profissionais de saúde. A média etária dos utentes oscila entre os 45 e os 50 anos, sendo a maioria do sexo feminino. As chamadas estão relacionadas com problemas associados a ansiedade, stress, sintomatologia depressiva, gestão de emoções e adaptação em situações de crise”, lê-se numa resposta enviada ao PÚBLICO pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS).
Pessoas que perderam o trabalho durante a crise sanitária, ou que têm medo de o perder, com receio de contrair o vírus, de o transmitir a familiares, que perderam alguém por causa da covid-19, que não conseguem pagar contas, que estão a acumular dívidas, que se sentem ansiosas, isoladas. Ou nada disto, e apenas uma memória antiga, muito anterior à pandemia, que as está a perturbar. Os motivos que levam alguém a marcar o número 808 24 24 24 são inúmeros, e podem estar ou não relacionados com a pandemia, contam os psicólogos que trabalham na linha.
Ana Mota Teles, de 39 anos, psicóloga clínica com formação em intervenção em crise, faz parte deste serviço desde o início: “Numa crise, não era sequer hipótese não fazer alguma coisa, tenho necessidade de contribuir para que esta crise tenha menos impacto na população.” Continua a trabalhar como psicóloga clínica, a dar consultas, formações, consultorias, entre outros projectos, para além da linha.
Neste momento, trabalha cerca de 14 horas por dia, só na linha faz oito horas: das 10h às 14h e, depois, das 22h às 2h. Tal como outros psicólogos deste serviço, trabalha a partir de casa, onde atende as chamadas. Pelo meio, ainda encaixa a prática de exercício físico três vezes por semana: faz aulas de ginástica online, sobretudo dança. Servem para aliviar o stress. “Temos histórias muito puxadas que exigem muito, temos de tentar um equilíbrio”, diz.
Aconselhamento e não acompanhamento
A linha é, explica, de aconselhamento e não de acompanhamento psicológico: “Não se pode substituir as consultas com um psicólogo por sucessivas chamadas para a linha.” O que Ana Mota Teles faz é “aconselhar”, encaminhar, facilitar. Pode sugerir exercício, autocuidados. Depende. Ouve e conversa, com um tom de voz calmo: “Tento acalmar a pessoa naquele momento, mostrar saídas, estratégias para regulação emocional. Ajudamos a pessoa a gerir a situação naquele momento.” E acrescenta: “Na linha queremos abraçar as pessoas com as palavras.”
Deparam-se com “situações muito diferentes”. Podem ser profissionais de saúde, “preocupados, porque querem dar o melhor, mas nestas condições não conseguem”. Ou “pessoas que trabalham em lares e têm medo de causar um surto”, pessoas que tinham consultas de psicologia no sector privado, que deixaram de ter dinheiro para as pagar e que têm dificuldade em marcá-las no Serviço Nacional de Saúde (SNS), pessoas com dificuldades económicas, que perderam rendimentos ou o emprego. E também jovens que “terminaram namoros, que estão com dificuldades em fazer a gestão emocional”: “Muitos adolescentes costumavam ter vidas super atarefadas e de repente pararam. Têm de voltar aos escapes, fazer exercício, distrair-se, mesmo que seja dentro de casa. Sugiro, por exemplo, videoconferências com amigos, com aulas de dança, a diversão é fundamental”, nota.
Miúdos a verem o vírus nas paredes
Também podem ser pais a pedir ajuda porque os filhos, pequenos, dizem que estão a ver o vírus nas paredes. Às vezes, a conversa é com os pais, outras com a criança. Miúdos receosos de que as pessoas de quem gostam morram ou que ficaram confusos em períodos de isolamento, sem ver amigos. Idosos que se sentem sozinhos à noite, no “vazio” da casa. Que têm medo de sair à rua. Mães, que acabaram de ter filhos, e que estão muito isoladas em casa. Pessoas com problemas de saúde que viram exames adiados. E há também quem já tivesse quadros de depressão e ansiedade, e por vezes de ideação suicida, antes da pandemia, e que pioraram no actual contexto.
Bento Sério, de 51 anos, psicólogo clínico, com formação, entre outras, em intervenção em crise e catástrofe, também está no projecto desde o início e também mantém outro trabalho como psicólogo clínico no SAMS (do Sindicato dos Bancários). Na linha, normalmente entra às 20h e fica até à meia-noite.
Recorda o “desconhecimento” sobre a pandemia que, numa primeira fase, gerava “medos, desconforto e ansiedade”. A isto juntaram-se as “dificuldades do dia-a-dia”, originadas pelas “mudanças que a pandemia trouxe”, situações novas como o teletrabalho, miúdos sem escola, a necessidade de “gerir uma realidade familiar diferente” ou mesmo o desemprego e a quebra de rendimentos. Já recebeu igualmente telefonemas de idosos com “muitas queixas de solidão”: “Tinham as suas vidas organizadas, alguns em universidades seniores, a pandemia acabou com muitas actividades e, ainda por cima, estão impedidos de estar com muitos dos familiares. Sentem-se sozinhos”, conta. Além disso, o “cansaço e esgotamento de tudo isto já é grande”. Não tem dúvidas: “A pandemia ajudou a destabilizar a saúde mental.”
Admite que fazer este aconselhamento por telefone representa “uma diferença enorme” em relação ao contacto presencial, exigindo “mais esforço para entender aquela situação naquele momento.” O que fazem para ajudar? “Aconselhamos passos para minimizar os problemas. Quando as pessoas nos ligam e estão muito alteradas, dando a informação adequada, ou mostrando técnicas de controlo de respiração, de relaxamento, através do nosso tom de voz — isso ajuda a pessoa a começar a raciocinar melhor. Não deixamos as pessoas sem resposta. Podemos reagendar um contacto no dia seguinte para saber como está. Até para a pessoa entender que não está sozinha.”
Bento Sério frisa que têm também “a possibilidade de pedir uma consulta psiquiátrica de urgência no SNS e [as pessoas] também podem ser encaminhadas para o médico de família”: “Nós activamos o pedido de consulta médica, depois o enfermeiro fará essa triagem e encaminha, se necessário, para urgência psiquiátrica ou para o médico de família. O psicólogo pode, se for necessário, activar a linha de urgência em caso de risco de vida da pessoa, e a ambulância vai a casa da pessoa.” Noutros casos, em que alguém liga, porque não tem, por exemplo, “dinheiro para necessidades básicas”, é informada sobre “programas de apoio social em curso” em juntas de freguesia ou câmaras municipais. No fundo, mostram “recursos” a quem está do outro lado.
Também o psicólogo clínico Luís Pinheiro, de 30 anos, está na linha desde o princípio: quis apoiar, sentiu a “responsabilidade social” da profissão que tem. Mantém igualmente outro trabalho, como psicólogo clínico, e na linha trabalha três a quatro horas por dia, entre o final da tarde e a noite.
Já atendeu chamadas muito diferentes: perturbações de ansiedade, do humor, depressão, isolamento, fragilidades anteriores à pandemia que ficaram “mais fortes”: “Aquelas dinâmicas que, no nosso dia-a-dia, fazíamos muito normalmente, como dar uma volta, estar com amigos, ir ao cinema, e que agora fazemos menos ou temos medo de fazer, isso tem impacto na nossa saúde mental. Por mais que se diga que a tecnologia pode ajudar, não substitui, porque as relações físicas não são substituídas pela tecnologia”, nota. A tudo isto junta histórias de vulnerabilidade social, uma “ansiedade relacionada com o futuro, o não sabermos o panorama social dos próximos tempos”. Há também receio da morte, pessoas que não se sentem seguras no local de trabalho, que estão com covid-19 em casa e não estão a conseguir lidar com a ansiedade.
“Percebeu-se que a pandemia iria afectar as pessoas e criou-se este serviço, mas qualquer pessoa que sinta que está em situação de vulnerabilidade ou crise e queira ter ajuda de um psicólogo, pode ligar”, diz Teresa Espassandim, da direcção da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) e coordenadora da equipa que apoiou a criação da linha, frisando que todos os psicólogos deste serviço são especialistas em psicologia clínica e da saúde. Considera que o projecto é “importante”, até porque o número de psicólogos no SNS é muito baixo, mas ressalva: “Claro que isto não substitui os psicólogos nos centros de saúde, é uma resposta que deve ser articulada, porque é uma intervenção breve. Muitas necessitam de outro tipo de acompanhamento.”
Menos procura no Verão
A especialista nota que no Verão, em Agosto, houve menos procura: “Outubro teve incomparavelmente mais chamadas do que Agosto, por exemplo. Mas, em Maio, o número de chamadas também foi muito elevado.” E há razões que o explicam: “Houve menos infectados, número menor de mortos, um cenário mais controlado do que agora… E, em qualquer circunstância, o período de férias é uma altura em que as pessoas têm mais descanso e convívio, que são factores protectores da saúde mental.” Agora, já se nota “a fadiga da pandemia”: “Estamos há nove meses nisto, estamos muito cansados.”
A responsável salienta que “em Abril, Maio e Junho, a crise era, sobretudo, sanitária, com medo dos contágios”: “Agora é económica e social, há perda de rendimentos, pessoas que não conseguem pagar contas, que vêem dívidas a acumular, negócios a fecharem. Isto tem efeitos devastadores. Quando alguém perde a esperança, perde também recursos para lidar com os problemas”.
Teresa Espassandim explica que “o facto de estarmos vigilantes e menos espontâneos implica um esforço cognitivo adicional”: “Não é simplesmente uma situação nova, mas uma situação nova que assusta as pessoas. Às vezes, não é tão literal como o medo de sermos contagiados, é uma sensação de perda de controlo das nossas vidas.” Além disso, persiste uma dúvida: “Há esta dimensão do ‘quando é que isto acaba?’. A questão da esperança é crítica para a saúde mental e, na linha, conseguimos dar esperança, lembrando às pessoas todas as situações que foram capazes de resolver, lembrando que isto não durará para sempre”.
O serviço, que se pretende manter mesmo quando a pandemia acabar, foi criado inicialmente através de uma parceria entre os SPMS e a OPP, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Desde Outubro, porém, que “o financiamento e o serviço estão totalmente integrados e sob a responsabilidade do SNS24”, lê-se na resposta enviada pelos SPMS. Para o presidente do Conselho de Administração dos SPMS, Luís Goes Pinheiro, a linha contribui para prestar “mais apoio aos cidadãos, designadamente a lidar com o isolamento e os problemas de saúde mental associados, no momento crítico que o país atravessa”.