Para integrar migrantes “é preciso uma aldeia” — Ima já acolhe duas famílias
As primeiras famílias a darem corpo e alma ao Projecto Lar chegaram a Ima, a aldeia na Guarda que “voltou a ouvir o choro de uma bebé”. Os habitantes cederam as casas reabilitadas para combater o isolamento social da população envelhecida e a falta de integração de migrantes e refugiados em Portugal.
Sentado muito direito no sofá, Zahid Javaid conta as línguas que domina com a ajuda discreta dos dedos da mão, que esconde para não repararmos. “Falo três línguas. Mas serão quatro, em breve”, assegura. O ugandense de 11 anos sente-se confiante: “Português, na verdade, não é assim tão difícil.” Os pais discordam veementemente da afirmação.
A família Javaid ainda está a acostumar-se a muitas partes da nova rotina numa pequena aldeia despovoada, a 15 quilómetros da Guarda. Por estes dias, para os mais novos isso envolve apanhar o autocarro para a escola às 7h3o e, no horário dos mais velhos, fazer compotas para cabazes solidários, aprender a tratar das hortas e campos agrícolas e frequentar aulas de português. Em conjunto com os Afolabi, são as duas primeiras jovens famílias de migrantes a darem corpo e alma ao Lar, o projecto que tem a ideia ambiciosa de “repovoar o meio rural através da integração de migrantes e refugiados”.
Os nove novos habitantes de Ima chegaram há um mês à aldeia com cerca de 15 pessoas, uma população envelhecida e casas ao abandono, onde o projecto arrancou em 2018. Com eles, “trouxeram de volta à aldeia o som do choro de uma bebé”, nota Teresa Machado. A actual coordenadora do projecto também se mudou para a Guarda, de Lisboa, atrás de uma “tentativa de sair dos centros urbanos e criar projectos em zonas rurais”. Não é o caminho esperado por alguém com um mestrado em Migrações. Mas combater “o abandono de terrenos agrícolas no meio rural” também estava longe de entrar nos planos dos migrantes que chegaram a Portugal.
Para Paul Afolabi, a pandemia de covid-19 foi o motor de uma mudança urgente. “Trabalhava numa empresa em Lisboa e internacionalmente, online, até a economia global tombar. Perdi o meu emprego, tudo mudou. Precisava de um novo começo”, explica.
Professor de química num politécnico na Nigéria, Afolabi chegou a Lisboa em 2016, onde fez um mestrado em Arte e Ciência do Vidro e da Cerâmica, na Universidade Nova. Pouco conhecia de Portugal quando procurava um destino seguro para a família, depois de se mudar para zonas diferentes na Nigéria, empurrados pelos ataques terroristas reivindicados pelo Boko Haram. O clima ameno dos países da Península Ibérica foi um dos pontos a favor, conta, antes de se rir para a janela. O frio e o vento cortante da Guarda apanharam-no de surpresa.
O projecto Lar também. “Inicialmente, quando vim para Portugal, não tinha isto em mente. É um pouco diferente do futuro que tinha imaginado, mas a longo prazo acho que é algo que posso fazer para ajudar a minha família. Tem sido tão fascinante. Agora, estou focado na agricultura, em entender o conceito do projecto e em familiarizarmo-nos com a nossa nova comunidade”, comenta. “Até agora, é uma história de sucesso. A oportunidade é incrível, a comunidade tem sido muito prestável e pareciam ansiosos por nos receber. Aqui é mais sereno do que em Lisboa, estamos mais próximos da natureza, não temos de estar sempre stressados e a apressar-nos.”
Só falta uma coisa, acrescenta o filho Kelvin, que ouvia a conversa: “Não podemos visitar os amigos e isso é muito mau para mim. Tenho saudades dos meus amigos da escola Lisboa.”
“Uma aldeia inteira a apoiar o projecto”
As duas famílias foram referenciadas pela Lisbon Project, uma associação que auxilia a integração de migrantes e refugiados em Lisboa. Cerca de 20 famílias beneficiárias dos apoios da associação assistiram à primeira apresentação do Lar, conta Gabriela Faria, presidente da Lisbon Project.
“Apresentamos a ideia de ir para fora de Lisboa durante a pandemia, numa altura em que muitas famílias estavam desempregadas e com muitas dificuldades em encontrar casa e a integrarem-se.” A falta de experiência em agricultura e o receio de não se adaptarem à aldeia foram superados pela “segurança e a estabilidade” de um contrato de trabalho e habitação paga, durante anos. Se tudo continuar a correr bem, diz, haverá lugar para mais famílias em Janeiro, nas casas cedidas pelos habitantes de Ima e recuperadas por voluntários e com o apoio monetário de empresas privadas.
“Em Lisboa é muito difícil quando não falam a língua e a documentação pode ser difícil de conseguir, especialmente antes de conseguirem um emprego. Apesar de haver uma rede burocrática, por vezes falta este apoio assim mais próximo. Acho que o Lar oferece esse apoio mais personalizado por estar fora de Lisboa e ter uma aldeia inteira a apoiar o projecto”, acredita. “Especialmente quando tens filhos, é uma promessa muito grande de um novo começo. E, pelo menos no caso destas duas famílias, qualquer coisa era melhor do que ficar em Lisboa, nas condições em que se encontravam.”
Os Javaid chegaram à capital há um ano. Zahid descreve assim a chegada: “Quando chegamos não havia hotel e nós estávamos ao frio, a tremer, à procura de um sítio para viver. Mas nesse dia, era 21 de Dezembro, por isso era Natal e as ruas estavam tão lindas. Foi a minha primeira vez a ver ruas tão bonitas.” Viviam os cinco num dos dois quartos da casa que partilhavam com “mais duas famílias e seis pessoas”. “Quando a bebé Fatima chorava, batiam-nos à porta, a pedir para não incomodar”, conta Hussain Javaid, técnico de marketing. “Viemos para aqui e encontramos o que estávamos à procura: um país pacífico. Gostamos muito de Lisboa. Mas, como sabem, a habitação é um grande problema para quem chega. Durante uma pandemia, estávamos a arriscar a nossa vida. ”
O que mais custou a Hussain e Karina foi não conseguirem reunir todos os documentos para inscrever os filhos na escola. Mas, com as medidas de restrição para conter a pandemia de covid-19 nos hospitais, o acesso aos serviços de saúde também se dificultou. Karina Javaid "ficou sem check up durante meses” após o parto de Fatima, que nasceu em Portugal. O filho mais velho também só foi ao dentista quando chegou à Guarda, conta. “Doía muito. Costumava tolerar, mas agora estou livre e relaxado”, corrobora Zahid, com uma voz séria que faz rir o irmão do meio.
Aos 11 e 10 anos, a lista de coisas que os dois mais gostam não tem fim. “Sopa”, “castanhas” e “aulas de matemática” fazem parte da enumeração em voz alta (“é mesmo verdade”, garantem os pais). “Andar de bicicleta à volta da aldeia toda, sozinhos” e “jogar futebol com os amigos” também. Brincar no Uganda, não. “Em Ima é muito divertido, sinto-me livre porque aqui é seguro”, diz, outra vez com a voz grave. Um lembrete da mãe, Karina, fá-lo parar de calçar as chuteiras e levantar-se de rompante. Esqueceu-se de um nome “muito importante” na lista feliz. “Cristiano Ronaldo. Adoro-o. Não conseguem imaginar o quão feliz fico por viver no país dele”, remata.