Preito in Memoriam: Ludwig van Beethoven (1770-1827)

Onde quer que esteja, em meu nome, bem como em nome de todos os que se sentem particularmente beneficiados e agradecidos, um bem-haja, Ludwig van Beethoven!

Rememorando os 250 anos do nascimento de Ludwig van Beethoven na cidade de Bonn a 17 de Dezembro, cujo vasto e multifacetado património musical legado às sociedades europeias para fruição pública e inserido na dialéctica do pensamento científico do seu tempo esteve na origem dos primeiros passos da minha formação e percurso musicais académicos e, de um modo particular, desde o início do desenvolvimento da minha técnica como instrumentista.

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Rememorando os 250 anos do nascimento de Ludwig van Beethoven na cidade de Bonn a 17 de Dezembro, cujo vasto e multifacetado património musical legado às sociedades europeias para fruição pública e inserido na dialéctica do pensamento científico do seu tempo esteve na origem dos primeiros passos da minha formação e percurso musicais académicos e, de um modo particular, desde o início do desenvolvimento da minha técnica como instrumentista.

Refira-se que esta dialéctica implicava no campo da filologia da música erudita ocidental a assimilação (ainda que intuitiva) do acorde de sétima como consonância definitiva e, na área da organologia, a relegação – não menos definitiva – do cravo e do clavicórdio para o “museu dos instrumentos antigos”, perante o surgimento e a imposição do pianoforte.

Ora é este mesmo património que terá possibilitado a muitos outros profissionais do campo da música erudita uma formação idêntica, mas, todavia, algo diferente da que prossegui ao longo das décadas em que decidi dedicar-me ao estudo da problemática sociológica da própria música. Profissionais estes que, como eu, certamente se sentem igualmente reconhecidos por terem beneficiado da possibilidade de execução e interpretação pública das obras do mestre, reconstruindo, a cada audição, a concepção estética da sua singular actividade criativa; obras que por serem evidentemente “valerosas” (retomando a expressão do nosso imortal vate), também a ele o foram “da lei da morte libertando”.

Assim sendo, e onde quer que esteja, em meu nome, bem como em nome de todos os que se sentem particularmente beneficiados e agradecidos, um bem-haja, Ludwig van Beethoven.

Pequeno extracto de uma obra de carácter biográfico actualmente em elaboração [1], também este texto se inscreve no modelo de “história de vida”, porquanto testemunha alguns factos sociais e culturais relacionados com o texto inicial e que vivenciei na longínqua primeira metade do século passado.

Assim sendo, creio interessante referir, desde já, o vaticínio do muito estimável anuário O Borda d’Água para todos os que partilharam comigo o mesmo ano de nascimento, e que assim o predisse: “Começa bem o ano de 1936: à quarta-feira, que é dia de bom augúrio, e sob o império do planeta Mercúrio, que, sendo 16 vezes menor que a Terra, é vivo como o azougue que lhe corre nas veias… A sua influência benéfica vai estender-se sobre todos os mortais, auxiliando-os e protegendo-os… Bom ano ainda para os que nele nascerem – serão de agudo engenho, hábeis, diligentes e sábios… 1936 será um ano farto, alegre, bem-disposto… Ninguém dele terá queixas, mas, se algumas houver: natura super omnia”.

Não será então pertinente duvidar de que o arguto vaticínio do popular anuário lisboeta se não cumpriu no começo do serão daquele dia de Primavera, porquanto se o sossego tradicional da vida colectiva da pequena e pacata cidade do Alentejo não chegou efectivamente a ser perturbado, em contrapartida, o ensaio da sua banda de música, a dita “Banda Popular”, da qual o meu pai era o regente e que momentaneamente o quebrava, esse, segundo consta, terá de súbito e alegremente acabado!

Ao que parece, um vizinho amigo terá acorrido às instalações da instituição musical dando a almejada notícia de que o rapaz tinha nascido – e que era bem um rapaz! –, pelo que o acontecimento valia bem uma longa e merecida pausa. E assim terá sucedido: remetidos os instrumentistas para o silêncio da urbe, o convite persuasivo foi de “todos para casa!”.

A partir desses primeiros instantes do despertar para a vida, dir-se-ia que o caminho do rapaz se encontrava de certa maneira predestinado e o percurso intelectual consubstanciado, como o de qualquer outra criatura humana, na frase recorrente de uso filosófico do “eu e as minhas circunstâncias”. Porque, decididamente, para o bem e para o mal, seria a música a inscrever-se na minha longa vivência intelectual, primeiramente envolvendo-me nos aspectos da actividade artística e, mais tarde, nas complicadas problemáticas da investigação científica.

No que concerne aos primeiros, os meandros da memória relembram que teria apenas oito anos de idade quando o meu pai, um ex-músico militar, decidiu começar a dispensar-me as primeiras lições de piano, ultrapassada a fase inicial de aprendizagem do solfejo. Para tal, a aquisição de um instrumento de estudo recaiu então sobre um piano vertical, francês, armado em madeira e, consequentemente, de qualidade medíocre, dados os parcos recursos do agregado familiar. De tal maneira que o instrumento era afinado pela manhã antes de o meu pai partir para o quartel, mas à tarde, no seu regresso, já se encontrava novamente desafinado. Um autêntico pesadelo!

Ainda assim, fortemente incentivado pelo lado paterno, depressa ultrapassei o nível dos exercícios elementares de mecanismo, bem como o dos estudos de velocidade adoptados na época (Carl Czerny e Muzio Clementi) e cheguei, finalmente, às inolvidáveis valsas de… Ludwig van Beethoven, que acabaram por estabelecer, durante vários anos, um antes e um depois no desenvolvimento da minha técnica pianística.

Assim sendo, comecei a ser convidado para participar em pequenos recitais, concursos e serões culturais que, uma vez por outra, surgiam nos centros urbanos de maior dimensão da região e proporcionavam a exibição da minha pequena destreza. E, independentemente da execução das obras de outros compositores, eram sobretudo algumas das 15 valsas do mestre que acabavam sempre por se impor para serem uma vez mais usufruídas, sobretudo os espécimes intitulados L’espoir, Le désir e La douleur (na edição da Sassetti revista por Campos Coelho).

Concluído o curso do liceu e em razão das limitações de estudar Música na província, a minha formação viria a prosseguir em Lisboa como trabalhador-estudante e passaria pela frequência, durante aproximadamente seis anos, de diversas áreas disciplinares do Conservatório Nacional.

Todavia, também a este respeito o muito sagaz vaticínio d’O Borda d’Água não deixaria de se cumprir, na medida em que a minha aceitação nesta instituição se concretizou através da inscrição no Curso de Clavicórdio e Interpretação de Música Antiga, um curso sui generis, mesmo a nível internacional, orientado pelo musicólogo, cravista e clavicordista de nacionalidade inglesa Macario Santiago Kastner.

Com efeito, graças a um acaso de relações pessoais, o conhecimento com este professor viria a dar-se nas instalações do próprio Conservatório Nacional, onde tive a oportunidade de lhe expor a minha pretensão em preparar o exame de ingresso no Curso Superior de Piano desta instituição.

Foto
João Ranita da Nazaré e Santiago Kastner num concerto há 60 anos no Conservatório Nacional DR

Assim sendo, a fim de avaliar o nível da minha preparação e destreza técnicas, Santiago Kastner solicitou-me a execução de uma obra, ao que prontamente acedi com a interpretação da Sonata op. 13 de… Ludwig van Beethoven, obra conhecida como Patética (ou “pateta”, recordando com um sorriso a resposta da velha senhora de uma cena de Os Maias) e com a qual, sob a sua orientação, viria a passar o citado exame, no final do ano lectivo.

Contudo, independentemente do meu envolvimento na técnica do clavicórdio e nos meandros da música antiga, Santiago Kastner sempre quis acompanhar de perto a minha evolução no respeitante à superação das dificuldades do Curso Superior de Piano. E dada a obrigatoriedade da execução de um “concerto para piano e orquestra” no exame final deste curso, foi com o seu aval que optei pelo Concerto para Piano n.º 1, op. 15, de… Ludwig van Beethoven. 

Em suma: das valsas à sonata e da sonata ao concerto, durante longos anos detive o privilégio de usufruir do pensamento estético do mestre, bem como de atentar na problemática da sua cientificidade, o que só me seria todavia explicitado anos mais tarde, aquando dos meus longos e complexos estudos na Academia de Paris.

[1] As Minhas Universidades ou Eu e a Sociologia da Música