Covid-19. O progresso científico, a luz ao fundo do túnel ou o princípio do fim da pandemia
Vivemos tempos ambivalentes: os mais notáveis progressos da ciência correm em paralelo com movimentos que os negam. Basta referir que hoje, quando enviamos naves para os confins do espaço, há grupos nas redes sociais que defendem que a Terra é plana ou que obrigam que em muitas escolas da primeira economia do mundo, os EUA, o criacionismo seja ensinado em pé de igualdade com o evolucionismo.
Vivemos tempos simultaneamente tumultuosos e exaltantes. Tumultuosos em termos sanitários – estamos a viver uma perigosa pandemia provocada por um microrganismo desconhecido para o sistema imunitário da espécie humana – mas exaltantes no que à ciência diz respeito. É que termos desvendado o genoma do SARS-CoV-2 um mês após a sua entrada em cena em Wuhan, e descoberta uma vacina em apenas um ano, significa que estamos num patamar científico único na evolução das ciências biomédicas. É um paradigma completamente novo e para melhor o compreender vale a pena revisitarmos o passado, recuarmos 224 anos e viajarmos até ao século XVIII.
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Vivemos tempos simultaneamente tumultuosos e exaltantes. Tumultuosos em termos sanitários – estamos a viver uma perigosa pandemia provocada por um microrganismo desconhecido para o sistema imunitário da espécie humana – mas exaltantes no que à ciência diz respeito. É que termos desvendado o genoma do SARS-CoV-2 um mês após a sua entrada em cena em Wuhan, e descoberta uma vacina em apenas um ano, significa que estamos num patamar científico único na evolução das ciências biomédicas. É um paradigma completamente novo e para melhor o compreender vale a pena revisitarmos o passado, recuarmos 224 anos e viajarmos até ao século XVIII.
No ano 1796, o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) deu início à era da vacinação, imunizando James Phipps, uma criança de oito anos, contra uma das infeções mais temíveis de então, a varíola, doença associada a uma letalidade de 10-40% e a sequelas temíveis, como a cegueira ou a desfiguração; só no século XX morreram 240 milhões de pessoas com esta infeção viral.
Como sempre acontece com quem inova, Jenner teve de suportar as críticas dos seus congéneres que tentaram desacreditá-lo, mas saiu vitorioso dessa luta. Nessa altura nem imaginava a dimensão dessa vitória. É que 181 anos depois, após 20 anos de uma campanha de vacinação realizada à escala planetária pela OMS, em 1977, na Somália, registou-se o último caso de varíola. Esta doença, com milhares de anos de existência, tinha sido erradicada do planeta, feito único na história da humanidade. Com exceção dos vírus guardados nos laboratórios do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, em Atlanta, nos EUA, e no Centro Estadual e Pesquisa em Virologia e Biotecnologia VECTOR, em Koltsovo, na Rússia, não encontramos em todo o planeta um único vírus da varíola. Esta erradicação trouxe consigo uma mensagem muito forte: não foram os medicamentos que o fizeram, mas sim uma vacina.
Esta descoberta fez de Jenner um dos médicos mais homenageados na História da Medicina. Um pouco por todo o mundo, estátuas, jardins, ruas, museus e institutos médicos com o seu nome lembram um dos mais célebres cientistas do mundo e essa homenagem até ultrapassou o planeta: na Lua deu-se o seu nome a uma cratera.
O processo iniciado por Jenner foi seguido por outros nomes que ficaram gravados perenemente na História da Medicina. Pasteur, Koch, Salk e tantos outros, foram responsáveis pela descoberta de vacinas contra as doenças infecciosas mais mortíferas para a humanidade: raiva, peste, difteria, tosse convulsa, tuberculose, tétano, febre-amarela, poliomielite, sarampo, papeira, rubéola, hepatite B e tantas outras. Curiosamente, neste ambiente de progresso científico imparável, que permitiu controlar ou erradicar estas infeções em vastas regiões do planeta, o nosso país ocupa um lugar cimeiro.
Portugal tem desde 1965 um Programa Nacional de Vacinação. Este Programa, que tem vindo a ser regularmente atualizado, é facultativo, universal e gratuito e, presentemente, inclui vacinas que nos protegem contra 15 doenças infecciosas. É considerado um dos programas de vacinação mais evoluídos do mundo, facto que honra a Medicina portuguesa.
O Programa tem um duplo objetivo: proteger a saúde individual dos cidadãos e a saúde pública, criando a muito falada imunidade de grupo. Neste contexto, ser vacinado é simultaneamente um dever individual e coletivo – um dever cívico. Felizmente, no nosso país a vacinação tem tido uma adesão massiva por parte da população, de tal modo que 95% das crianças portuguesas estão adequadamente imunizadas. Doenças como a difteria, o tétano, a poliomielite ou o sarampo praticamente desapareceram dos nossos hospitais e a esperança é que através da vacinação não mais vejamos as nossas crianças morrerem por sua causa ou ficarem com sequelas, por vezes terríveis, para o resto da vida.
Mas este panorama idílico está ameaçado. É que entraram em cena os movimentos antivacinas. Na sua origem estiveram dois médicos, o inglês Andrew Wakefield, que acabou expulso pela Ordem dos Médicos do seu país, e o americano Jeff Bradstreet, que acabou por se suicidar. Ambos defendiam a relação das vacinas com o autismo. Apesar da saída de cena destas duas personagens, estes movimentos autonomizaram-se, tornaram-se militantemente ativos nas redes sociais, tendo levado muitos pais a não vacinarem os seus filhos.
À medida que os seus argumentos foram sendo desmontados pelas autoridades da saúde – entretanto apoiadas por estudos científicos –, também os seus alvos foram-se sucessivamente modificando: primeiro, o problema estava em substâncias químicas existentes nas vacinas (o conservante timerosal ou o adjuvante alumínio que, entretanto, por precaução, foram retirados apesar da não existência de provas da sua perigosidade), depois o foco passou para o curto intervalo entre as administrações vacinais (igualmente com total ausência de provas científicas) e, por fim, a mudança das suas hipotéticas repercussões: além do autismo falam agora de alergias e de doenças autoimunes.
As consequências é que não se fizeram esperar; com muitas crianças a constituírem novas bolsas de não vacinados, passaram a verificar-se surtos de sarampo um pouco por todo o mundo, com especial relevância na Europa e nos EUA – onde numerosos países já tinham erradicado esta infeção –, contando-se em centenas de milhares o número de novos casos, associados a uma significativa letalidade. Os movimentos antivacinas trouxeram o sarampo de volta.
E não se pense que este problema resulta apenas da pobreza e da iliteracia. Por exemplo, na Holanda, um dos países mais evoluídos do mundo, são as classes mais instruídas e com mais recursos que não estão a vacinar as suas crianças, tal como acontece nos EUA com muitas celebridades de Hollywood. Este é mais um aspeto em que a ciência não tem conseguido comunicar adequadamente, talvez porque utiliza os circuitos formais de comunicação, numa época em que as redes sociais são mais eficazes em fazê-lo, e é precisamente nas redes sociais onde os retrógrados movimentos antivacinas se movimentam.
Até a política e a religião passaram a ser intervenientes neste problema. Por exemplo, nos EUA e na Itália são conhecidas as posições antivacinação de Donald Trump ou de Beppe Grillo e na Nigéria um grupo de imãs conseguiu proibir a vacina da poliomielite com o argumento que seria uma forma de os EUA introduzirem a sida nos países islâmicos. O resultado foi dramático: o ressurgimento da poliomielite com as suas dramáticas sequelas definitivas.
E agora chegou a vacina contra a covid-19. Depois de termos assistido à descodificação e divulgação do genoma do SARS-CoV-2 apenas um mês após o seu aparecimento, a indústria farmacêutica pede às Agências Reguladoras do Medicamento a aprovação para duas das mais de cem vacinas em desenvolvimento, e passou apenas um ano após a eclosão da nova pandemia, facto único na História da Medicina. Antecipou-se em dez anos a calendarização habitual!
Vejamos alguns aspetos relacionados com a vacina a merecerem um particular destaque. Por exemplo, a sua importância prática.
Neste seu primeiro ano de transmissão aos seres humanos foram diagnosticadas cerca de 70 milhões de pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2. Apesar de ser muita gente, os infetados por este vírus representam menos de 1% da população mundial (7.780.000.000 de pessoas). Ora acontece que pela sua enorme capacidade infecciosa, pela sua generalização geográfica e na ausência de armas terapêuticas específicas, se nada de inovador acontecesse, este vírus iria provocar nos próximos anos um impacto extraordinário nas economias, na saúde e no modo de vida dos seres humanos, até se atingir a imunidade de grupo, que aconteceria quando 60-70% da população adquirisse anticorpos específicos. A vacina é esse elemento inovador, a primeira arma terapêutica capaz de antecipar o objetivo de voltarmos a uma situação de normalidade. Estas vacinas são a primeira luz ao fundo do túnel.
As primeiras duas vacinas a solicitarem a autorização das autoridades, após terem sido testadas em dezenas de milhares de voluntários, são as vacinas das empresas de biotecnologia BioNTech-Pfizer (já foi aprovada pela agência inglesa) e Moderna e ambas baseiam-se numa nova tecnologia: a de RNA mensageiro (mRNA). Como é que estas vacinas funcionam? O mRNA sintetizado – um fragmento do material genético do vírus – é injetado no corpo humano e ao contactar com as nossas células fornece instruções para a produção de uma proteína que vai desencadear a produção de anticorpos específicos para o SARS-CoV-2. Quando a pessoa vacinada é infetada pelo coronavírus é imediatamente protegida por esses anticorpos, que destroem o vírus e assim evitam a doença.
Muito provavelmente, com estas vacinas estamos a inaugurar uma nova era vacinal. O conhecimento atual aponta para que no futuro as vacinas evoluirão para a tecnologia mRNA ou outra similar, como a da vacina da AstraZeneca.
Pela primeira vez na história da Medicina está-se a vacinar a população com uma vacina que introduz no organismo humano apenas informação genética dirigida, e esta inovação tem gerado receios e contestação de alguns grupos, sobretudo os movimentos antivacinas. Mas essa contestação é antiga, quer com as vacinas, quer com tudo o que seja inovação. Vejamos.
Por exemplo, quando Edward Jenner utilizou na vacina original da varíola material proveniente das lesões cutâneas provocadas pela variedade bovina desse vírus (menos agressiva para os seres humanos), foi contestado e ridicularizado pelos seus colegas. Um famoso cartoon de James Gillray, de 1802, ilustra camponeses com cabeça de vaca após terem sido vacinados. Apesar disso, o sucesso da vacina é conhecido, e muitos milhões de pessoas deveram-lhe a vida.
Após esta primeira vacinação, realizada com produtos biológicos infetados e recolhidos diretamente das lesões, o processo de vacinação foi evoluindo ao longo dos tempos. Primeiro utilizando microrganismos vivos atenuados, depois mortos e, posteriormente, apenas as suas proteínas indutoras da imunidade (é o que acontece atualmente com as vacinas da gripe). Mas em todas estas fases evolutivas houve dúvidas, contestação e às vezes problemas. Foi o que aconteceu com a vacina da tuberculose, a BCG.
A BCG é a vacina contra a tuberculose que ainda hoje usamos. Feita a partir de bacilos atenuados de uma variedade bovina do bacilo da tuberculose, ela foi aplicada pela primeira vez com sucesso em 1921 (esta vacina será centenária no próximo ano, tornando-se a mais antiga arma terapêutica utilizada em Medicina). Administrada com enorme esperança e bastante sucesso na prevenção de uma das mais mortíferas doenças infecciosas, ela esteve envolta em polémica, sobretudo a partir de 1930, quando um erro laboratorial foi causa de um acidente sério. Na cidade alemã de Lübecck foi utilizado um lote de vacinas com bacilos virulentos, o que motivou a morte de 72 crianças recém-nascidas. Seguiram-se anos de descrédito, o que não impediu que até hoje mais de mil milhões de pessoas tenham sido vacinadas com a BCG e, apesar de ser considerada uma vacina pouco eficiente, contribuiu de forma decisiva para o controlo da tuberculose, doença que nos dias de hoje e, apesar dos notáveis progressos, continua a matar mais de um milhão de pessoas anualmente. Até os mais notáveis avanços científicos são muitas vezes perturbados por acidentes.
Relativamente às vacinas anti-covid, mesmo antes delas começarem a ser administradas, correm uma vez mais nas redes sociais campanhas negacionistas, algumas contendo argumento delirantes: que provocam autismo; que a rapidez com que foram elaboradas não lhes permite o necessário padrão de segurança; que as vacinas podem alterar o ADN humano; que introduzem no organismo microchips rastreáveis que permitem o acesso a informações pessoais sanitárias (aqui aparece como responsável Bill Gates); que contêm tecido pulmonar fetal de bebés abortados; que é mais seguro apanhar a doença que tomar a vacina, etc. Todos estes argumentos são facilmente rebatíveis, mas estas afirmações, uma vez colocadas nas redes sociais, ganham autonomia e têm a sua amplificação garantida.
Vivemos tempos ambivalentes: os mais notáveis progressos da ciência correm em paralelo com movimentos que os negam. Basta referir que hoje, quando enviamos naves para os confins do espaço, há grupos nas redes sociais que defendem que a Terra é plana ou que obrigam que em muitas escolas da primeira economia do mundo, os EUA, o criacionismo seja ensinado em pé de igualdade com o evolucionismo. É à luz deste estado de coisas que se percebe melhor o que o ex-Presidente Barack Obama quis exprimir quando, numa recente entrevista a propósito do lançamento do seu último livro, declarou: “A internet e as redes sociais são presentemente a maior ameaça à nossa democracia.”
Vamos ter o privilégio de começar a ser vacinados nos próximos meses contra a covid-19 e devemos ter confiança nesta vacina, como temos com outras. As largas dezenas de milhares de pessoas que já o fizeram voluntariamente no âmbito dos ensaios clínicos permitiram atestar elevados padrões de segurança (as reações adversas situaram-se dentro do que é habitual) e de eficácia (ambas as vacinas evidenciaram uma eficácia a rondar os 95%, bem superior à da maioria das vacinas que presentemente dispomos).
É óbvio que, tal como acontece com todos os medicamentos, não há vacinas totalmente seguras, e o risco de existirem reações adversas graves é possível. Não esquecer que muitas pessoas reagem aos fármacos de forma idiossincrática.
Reações graves aconteceram logo no primeiro dia da vacinação no Reino Unido em duas pessoas, o que levou a Agência Reguladora do Medicamento inglesa a aconselhar que ela deve ser evitada em pessoas com histórico clínico de alergias graves a alimentos, a outros medicamentos ou a outras vacinas. Mas este aconselhamento não é restrito a esta vacina, pelo contrário, sendo uma prática médica habitual relativamente a todas as vacinas. Os riscos vacinais existem, porém estes riscos são potenciais e raros, enquanto os seus benefícios são reais, generalizados e mesuráveis – salvam vidas. O que não dariam os cerca de dois milhões de pessoas já falecidas com covid-19 para poderem ter sido vacinados com as vacinas que agora se perfilam!
Apesar do ambiente de enorme esperança, é normal que existam dúvidas: é que ainda nos faltam muitos conhecimentos sobre as vacinas que agora nos são apresentadas, dúvidas que só poderão ser esclarecidas no terreno. Porventura as dúvidas mais importantes serão sobre a eficácia, a segurança e a duração da sua capacidade protetora. Relativamente às duas primeiras, as informações provenientes dos ensaios clínicos apontam para níveis elevados. Quanto à duração da sua capacidade protetora, como é óbvio não sabemos. Há vacinas antivirais que dão proteção muito prolongada (por exemplo, sarampo e poliomielite) e outras que conferem uma proteção fugaz, caso da vacina da gripe. Porém, há a esperança que essa proteção possa vir a ser duradoura: é que muitas pessoas que tiveram Síndroma Respiratória Aguda Severa, há dezassete anos, ainda têm anticorpos contra o coronavírus responsável, o SARS-CoV-1, e alguma imunidade cruzada contra o SARS-CoV-2.
Há ainda outras importantes questões relacionadas com estas vacinas que só o futuro poderá esclarecer, como por exemplo o seu comportamento nas crianças, nas grávidas, em determinados grupos étnicos e nos idosos; nestes, admite-se uma menor eficácia, tal como acontece, aliás, com outras vacinas, como a da gripe. De qualquer forma, é preferível ter um baixo nível de anticorpos neutralizantes do que não ter nenhuns. A proteção conferida, não sendo a ideal, será alguma. Por isso, os grupos populacionais mais idosos, e por isso mais vulneráveis e associados a uma maior letalidade, devem ser incluídos nos grupos prioritários para a vacinação.
A esperada aprovação destas vacinas pela EMA, a Agência Europeia do Medicamento (a da BioNTech-Pfizer em 29 de dezembro e a da Moderna em 12 de janeiro) significará a confirmação da sua eficácia e segurança. Esta agência, tal como já fez a agência inglesa, irá submetê-las a um rigorosíssimo escrutínio de modo a que, à partida, fique garantido que estamos perante mais um notável progresso da ciência, posto ao serviço da humanidade.
Em 8 de dezembro, Margareth Keenan, uma inglesa de 90 anos, foi a primeira pessoa a ser oficialmente vacinada com a vacina da BioNTech-Pfizer. Na semana anterior a Rússia já tinha começado a vacinar milhares de médicos, professores e outros grupos de risco, em dezenas de centros em Moscovo, com a sua vacina Sputnik V. Entretanto, quase um milhão de chineses já receberam duas vacinas experimentais produzidas pelo China National Pharmaceutical Group (Sinopharm). Estas vacinações transmitem-nos a esperança que se tenha iniciado o caminho que levará ao controlo da presente pandemia – o início do seu fim. Mas até lá chegarmos o caminho ainda vai ser longo. Por isso não se esqueça de continuar com os comportamentos preventivos: manter o distanciamento social, usar máscara, desinfetar as mãos e as superfícies e cumprir rigorosamente a etiqueta respiratória, obrigações cívicas que podem fazer a diferença entre a vida e a morte, a sua ou a dos seus.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico