Encontro de Leituras reuniu leitores de Ondjaki de diferentes sotaques
A primeira sessão do clube de leitura do PÚBLICO e do jornal brasileiro Folha de S. Paulo juntou cem leitores, que conversaram com o escritor angolano sobre a sua obra, a partir do romance Bom Dia Camaradas. A próxima sessão deste encontro acontecerá na segunda terça-feira do próximo mês de Janeiro.
Dar gargalhadas em tempo de pandemia: foi o que aconteceu a muitos dos que aproveitaram o confinamento para ler o romance de estreia de Ondjaki, Bom Dia Camaradas (ed. Caminho), a obra que esteve em discussão na sessão inaugural do Encontro de Leituras. O novo clube conjunto do PÚBLICO e do jornal brasileiro Folha de S. Paulo reunirá todas as segundas terças-feiras de cada mês para debater online com os leitores de ambas as publicações romances, memórias, ensaios e obras de jornalismo literário ou de crónica.
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Dar gargalhadas em tempo de pandemia: foi o que aconteceu a muitos dos que aproveitaram o confinamento para ler o romance de estreia de Ondjaki, Bom Dia Camaradas (ed. Caminho), a obra que esteve em discussão na sessão inaugural do Encontro de Leituras. O novo clube conjunto do PÚBLICO e do jornal brasileiro Folha de S. Paulo reunirá todas as segundas terças-feiras de cada mês para debater online com os leitores de ambas as publicações romances, memórias, ensaios e obras de jornalismo literário ou de crónica.
O evento que se realizou na noite de terça-feira através da plataforma Zoom juntou leitores de Portugal, Brasil e Angola, mas também da Argentina, dos Estados Unidos, da Roménia e de Itália. Houve lotação esgotada (o máximo de participantes por sessão é de cem pessoas) para conversar com o escritor angolano que está a comemorar 20 anos de vida literária e que acaba de publicar em Portugal O Livro do Deslembramento (ed. Caminho) ainda não editado no Brasil.
Ondjaki, que participou no evento online, a partir de Luanda, teve a surpresa de encontrar o seu editor português, Zeferino Coelho, entre a assistência. Falou do seu método de trabalho, da importância da música no seu dia-a-dia, e de como mentiu ao seu editor angolano sobre esse seu primeiro romance. Lembrou, tantos anos depois, a marca que deixaram os camaradas cubanos na sua infância e na dos seus colegas de escola, todos personagens da obra em discussão. Recordou com saudade a Avó Agnette e o dia em que tudo o que ela lhe ia dizendo fez todo o sentido. E respondeu também a questões mais políticas, ligadas às utopias daqueles anos pós-independência. “A história está cheia de todas as possibilidades que não aconteceram”, afirmou Ondjaki, respondendo à pergunta de um leitor brasileiro.
Ao longo das duas horas da sessão que começou às 22h de Lisboa (23h em Luanda e 19h em Brasília), alguns participantes preferiram estar com a câmara desligada, outros ficaram só a ouvir. Entre aqueles que contaram o que sentiram ao ler a obra de Ondjaki e lhe colocaram questões, houve também quem anunciasse estar doente com covid-19, isolado em casa, mas mesmo assim com vontade de participar.
“A voz desse narrador que está no Bom Dia Camaradas, que é o narrador que também vai sofrendo mutações conforme o projecto, é muito perto da voz que está no livro Os da Minha Rua; depois, na Avó Dezanove e o Segredo do Soviético, há uma ligeira mutação, há uma outra maneira de organizar o pensamento embora pareça o mesmo narrador. E n’O Livro do Deslembramento é outra a maneira de abordar esse narrador. Ele ainda finge que é criança, mas já é outra coisa”, explicou Ondjaki sobre a tetralogia em que aborda a Luanda dos anos 90.
Muitos dos leitores tinham assistido ao episódio dedicado a Ondjaki da série documental Herdeiros de Saramago, de Carlos Vaz Marques e Graça Castanheira, que passou na RTP e está disponível na RTP Play. Nele se vêem algumas das personagens deste livro, acerca das quais o escritor angolano contou várias histórias. Lembrou, por exemplo, que quando escreveu Bom Dia Camaradas enviou o livro com todos os nomes verdadeiros para o seu editor. Só depois conseguiu reunir num almoço os amigos da escola, as suas personagens, para lhes dar a ler o manuscrito, garantindo-lhes que, se assim quisessem, arranjaria para eles novas identidades. Uns não leram, outros disseram não havia problema e que confiavam nele. Ainda recentemente Ondjaki estava com um deles num restaurante quando se aproximou uma senhora com um exemplar do livro de contos Os da Minha Rua a pedir-lhe um autógrafo. Quando percebeu que estava ali também uma das personagens do livro, quis sentar-se a conversar e a almoçar com os dois. “É uma coisa bonita, não há-de acontecer muitas vezes, comermos qualquer coisa com o autor e o personagem…!”, notou Ondjaki.
A cidade de um escritor anda entre o real e pessoal, defendeu, por isso cada um terá a sua visão de Luanda. Quando lhe perguntam se Luanda era assim nos anos 1980/90, costuma responder que “aquela rua era assim” e que “aqueles miúdos viveram aquilo”, ressalvando que há “outras ruas, há cidades que passaram pior com a guerra, houve gente mais privilegiada, outros muito menos privilegiados”. Por isso considera que o seu livro não é “embaixador de nada”. Mas não deixa de afirmar que tem uma âncora no real, em personagens que são reais. “Quando me perguntam se o livro é autobiográfico eu procuro sempre mentir, de maneira delicada. Eu acho que o que se passa com aquele personagem não poderia ser calculado matematicamente. Ele reúne características, mesmo físicas, mesmo de humor, mesmo de sensibilidade, que não eram só minhas. Digo isto com toda a franqueza.”
O que é autobiográfico para Ondjaki é a linha cronológica e os nomes dos locais. “De um modo geral, é um resumo.” Claro, que sociologicamente, diz também o autor que é formado em sociologia, “naquelas crianças há características de um estrato de classe”. Uma vez perguntaram-lhe no Brasil como é que aquele protagonista, criança, filho de um vice-ministro, tinha um cozinheiro em casa. “Muita gente não tinha cozinheiro em casa e muita gente tinha cozinheiro em casa. Não é o traço decisivo para definir grande coisa. Mas também define.” Tal como com os bombardeamentos. “Não havia guerra aqui em Luanda, só havia consequências da guerra. É diferente de uma criança que estivesse no Sul, em zonas bombardeadas constantemente. Nós de vez em quando não íamos à escola. Houve lugares onde não era possível ir à escola: ou porque não havia escola mais, porque foi bombardeada, ou porque o professor morreu, ou porque o aluno morreu.”
Nesta conversa em que leitores de várias nacionalidades foram entrando em diálogo com o escritor, moderados pelas jornalistas Isabel Coutinho (do PÚBLICO) e Úrsula Passos (da Folha de S. Paulo), o Prémio José Saramago 2013 (que lhe foi atribuído pelo romance Os Transparentes) lembrou também as discussões que ele e os seus colegas tinham na terceira classe com a professora Berta por causa da importância da História e das estórias. “Se me pergunta qual é o meu apaixonamento: é pela estória com ‘e’. Agora o Bom Dia Camaradas faz sentido, e às vezes torna-se cómico, pelo lado verosímil e não pelo lado inverosímil. O lado inverosímil precisa da história para poder fazer contraste, para progredir, para poder apanhar balanço.”
Recordou uma leitura que fez recentemente em que um autor defendia que para se fazer ficção é necessário controlá-la para que ela pareça ficção, sem se exibir, e sem ir contra a realidade. Mas é diferente a tarefa de um ficcionista angolano: “É justamente isso que nos confunde aqui em Angola: a realidade é mais ficcionada e mais ficção, e a ficção é fraquinha ao pé da realidade que vivemos. Então os conceitos estão todos trocados, ou, como diria o [escritor angolano] Manuel Rui, estão todos cafuzados.”