Pandemia: para onde vamos?
Os meios são indissociáveis dos fins. Os suecos chegam ao fim deste caminho como uma sociedade mais adulta, responsável e democrática. Nós estamos mais frágeis, menos democráticos, menos sapiens sapiens. Não me respondam que lá há mais dois mil mortos. Não vim aqui debater mortos. Vim falar sobre a vida.
Uma das grandes questões da vida em sociedade é a da relação entre meios e fins. Nesta pandemia, que medidas são aceitáveis? E que fins queremos atingir?
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Uma das grandes questões da vida em sociedade é a da relação entre meios e fins. Nesta pandemia, que medidas são aceitáveis? E que fins queremos atingir?
Em Portugal, optou-se pelo “choque e pavor”. Esta estratégica foi aceite por um amplo consenso político que se apresentou desde o início como um “consenso científico”. Ora, a ciência é justamente o avesso do “consenso” – é a primazia do dissenso, do contraditório. Criou-se um ambiente digno do “lysenkoísmo” (erguido a ciência de Estado por Estaline). Contra a proliferação de negacionistas (liderados por Trump e Bolsonaro), o Governo e os media secundarizaram o contraditório sério. Hoje um polícia pode questionar-nos aonde vamos ao sábado à tarde. Se respondermos que vamos trabalhar por turnos na “atividade essencial” de colar solas de sapatos ou montar carros numa fábrica com mais 400 colegas e um WC comum, ele sorri e diz: “Pode passar!”
Multiplicam-se estudos científicos que deslegitimam com provas a eficácia de medidas como confinamento, recolher obrigatório, uso de máscaras na comunidade em pessoas saudáveis. Tais medidas foram-nos apresentadas como evidências, e não como hipóteses. “Estamos em guerra”, disseram-nos, pelo que se contam as mortes diárias. Não estamos em guerra, e o número de mortos nada nos diz se não for relacionado com a idade média da população e o seu estado de saúde. Os testes PCR não informam sobre o número de doentes, mas de contacto com o vírus. Isso não obstaculizou a meses de imagens de doentes ventilados, acompanhadas de declarações paternalistas a justificar a supressão de direitos e liberdades democráticas.
O SNS está hoje transformado numa unidade de agudos, emergencial (o sonho de todos os defensores da privatização, fazer do SNS uma zona de urgência, e do sector privado um prestador de cuidados diferenciados). Os profissionais de saúde estão mais desmoralizados, há hoje menos médicos no SNS do que em Março. A saúde dos portugueses está em risco por falta de cuidados regulares. E – o mais grave – suspendeu-se a democracia, abrindo-se o precedente a que outros governos no futuro o façam em nome da “exceção”. Chegou-se ao limiar do totalitarismo: proibir visitas a avós com 90 anos num lar, que morreram sós; suspender as interações sociais a mais de um milhão de crianças e jovens (a quem se explicou que se namorassem e brincassem seriam culpados de matar os avós de 80 anos); decretou-se quantos membros da família podiam estar juntos; e, no peculiar caso inglês, o Governo disse mesmo como o sexo poderia ter lugar: beijos, não. O Estado entrou na nossa intimidade: no nosso luto, na nossa mesa e na nossa cama.
Muitos cientistas, com carreiras reputadas em universidades e centros de investigação, têm sido vítimas desde ostracismo a ataques ad hominem, porque ousam questionar o consenso. Defendem que o vírus se expandiu e, com ou sem confinamento, com ou sem máscaras na comunidade, o número de mortos por país irá aproximar-se, e os únicos fatores qualitativos que os diferenciam serão a robustez dos serviços de saúde e a idade e imunidade (estado geral) das populações atingidas. Bérgamo tem hoje 50% de imunidade específica a este vírus e Estocolmo 30%. Referem que a imunidade inata e a imunidade adaptativa induzida pela exposição a outros vírus com algumas características semelhantes, entre os quais vários coronavírus endémicos, tornaram mais de 80% da população assintomática. Entre um e dois milhões de portugueses já terão tido contacto com o vírus. Afirmando-se defensores dos programas de vacinação, questionam porquê vacinar toda a população e não só os de risco, já que 98% das pessoas desenvolvem doença ligeira ou nenhuma. Pedem cautela em usar numa escala inédita uma vacina que se baseia numa nova técnica (a utilização de RNA mensageiro, ainda pouco provada, mesmo em aplicações terapêuticas), mas as suas perguntas são suplantadas por press releases da Pfizer, estes, sim, noticiados como evidências incontroversas.
“Uma pandemia inesperada.” Não há nada de inesperado nesta pandemia. A humanidade conhece há séculos que os seus principais competidores são os vírus e as bactérias. Intensa produção científica tem vindo a alertar para prováveis pandemias, não porque seriam criadas num laboratório ou por Bill Gates (novo Nostradamus das teorias conspirativas), mas simplesmente porque os vírus existem e existirão e há condições favoráveis à sua propagação: população concentrada em megacidades, em condições de vida e saúde precárias, e uma economia globalizada assente no modelo just in time que exige trocas de bens à velocidade da luz. O carácter anárquico e competitivo da produção capitalista não permite uma cooperação mundial e investimento centralizado na cura e na prevenção de doenças. O diretor da revista científica The Lancet afirmou que estamos perante não só uma pandemia mas uma sindemia: a interação entre um problema de saúde e o seu contexto económico e social.
A pandemia tem origem num vírus benigno para a maioria das pessoas, mas chegou a uma sociedade economicamente adoecida. Metade da humanidade não tem acesso a água ou sabão; no mundo, os profissionais de saúde ou não existem ou trabalham no limite, erodidos por 30 anos de neoliberalismo. A fome é endémica no Sul global. No Ocidente predomina a síndrome metabólica – diabetes, tensão alta, colesterol elevado, obesidade – fruto da má alimentação, baseada nos baixos salários, ritmos de trabalho intenso e por turnos e ausência de tempo livre e exercício físico. Estes são os determinantes sociais da saúde, o cenário que a covid-19 encontrou pela frente no século XXI. Na ausência de uma economia política de bem-estar sobraram à maioria dos governos, como resposta, medidas aplicadas... na Idade Média.
Em Março, foi-nos imposto um confinamento, medida medieval usada para barcos que aportavam às cidades, quando a natureza nos dominava e a verdade de Estado era feita da leitura da “palavra de Deus”. Exigia-se a quarentena dos potenciais doentes, que não se podiam diagnosticar nem curar. Estavam nas mãos de Deus, do “inesperado”. O grande avanço do Renascimento foi afirmar, pela voz de corajosos cientistas que arderam nas fogueiras ateadas pelo “consenso” da época, que o Homem é uma aventura única no planeta. A mais bela aventura. Porque é o Homem que sabe que sabe (Homo sapiens sapiens). Que não se sujeita, mas domina a natureza. Que tem consciência e projeta o futuro – o Homo imaginosus. Nas palavras do escritor Eduardo Galeano, somos o que fazemos para transformar aquilo que somos.
Disseram-nos em Março que este confinamento era para apetrechar o SNS e “aplanar a curva”. Fui então, no PÚBLICO, defensora do confinamento, que só equacionava por 15 dias, tempo para requisitar hospitais e laboratórios privados. Jamais pensei que havia qualquer racionalidade em prolongar estas medidas mais tempo à “espera da vacina”. O lastro de mortos por outras doenças, a doença mental, as falências, a erosão do SNS, a desagregação social que deixou são devastadores. E os seus efeitos mal começaram. A opção pelo encerramento de serviços (porque a indústria, coração da produção de valor, onde há altas concentrações de trabalhadores, não parou), quando há concorrência entre empresas e Estados, leva à falência as empresas mais frágeis e os Estados mais periféricos. E conduz à erosão das classes médias e ao aumento da pobreza absoluta e da desigualdade social. E sendo a interação social tão vital à vida como a alimentação (sublinho tão importante como), a opção pelo confinamento é inconsequente e cruel.
O confinamento foi imposto por um sector que tem casas confortáveis, salário seguro e redes de apoio. Imposto a uma população que já vivia só. Ou sem redes familiares densas. E que sempre trabalhou numa fábrica ou empresa, usou transportes públicos e está obrigada a regressar a um pequeno apartamento onde tem de estar fechado, com crianças, no meio da ansiedade de perder o emprego. Foi e é um confinamento insensível à vida real da maioria da população.
Os meios são indissociáveis dos fins. Os suecos chegam ao fim deste caminho como uma sociedade mais adulta, responsável e democrática. Nós estamos mais frágeis, menos democráticos, menos sapiens sapiens. Não me respondam que lá há mais dois mil mortos. Não vim aqui debater mortos. Vim falar sobre a vida. Maiakovski escreveu um poema a Essenine quando este se suicidou: “Nesta vida, morrer não é difícil, difícil é a vida e o seu ofício.”