Isso do racismo é uma moda com séculos
Não espanta que tanta gente da geração de Jorge Jesus não entenda o que se está a passar à sua volta, quando os Maregas do futebol já não transigem com o racismo e abandonam os campos.
A opressão de seres humanos sobre outros seres humanos é uma moda que se perde na noite dos tempos. Nem sempre adquiriu a forma de escravatura, colonialismo ou racismo, mas essas, em específico, têm também já uns séculos. Este ano, e só para nos reportarmos ao território português, tivemos na estação Outono-Inverno, as agressões policiais a Cláudia Simões na Amadora ou os cânticos racistas dirigidos ao futebolista Marega, enquanto a Primavera-Verão ficou marcada pela morte do actor Bruno Candé, baleado em plena rua. Enfim, tento ironizar, se é que tal é possível, a partir das palavras do treinador de futebol Jorge Jesus, que depois dos incidentes, esta semana, num campo de futebol, em Paris, desvalorizou os acontecimentos, dizendo que “isso do racismo está muito na moda”.
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A opressão de seres humanos sobre outros seres humanos é uma moda que se perde na noite dos tempos. Nem sempre adquiriu a forma de escravatura, colonialismo ou racismo, mas essas, em específico, têm também já uns séculos. Este ano, e só para nos reportarmos ao território português, tivemos na estação Outono-Inverno, as agressões policiais a Cláudia Simões na Amadora ou os cânticos racistas dirigidos ao futebolista Marega, enquanto a Primavera-Verão ficou marcada pela morte do actor Bruno Candé, baleado em plena rua. Enfim, tento ironizar, se é que tal é possível, a partir das palavras do treinador de futebol Jorge Jesus, que depois dos incidentes, esta semana, num campo de futebol, em Paris, desvalorizou os acontecimentos, dizendo que “isso do racismo está muito na moda”.
Não me parece, sinceramente, que a sua opinião seja muito diversa da de muitos outros portugueses. A única diferença é que Jesus diz exactamente o que pensa e as suas palavras têm difusão. Acompanho de perto o fenómeno futebolístico e o da música popular. Há imensas diferenças, como é evidente, mas também algumas semelhanças. Uma delas tem a ver com o cenário de expectativas que os dois universos transportam. Por outras palavras, são duas áreas onde existe representatividade negra e onde ela não surpreende. Ninguém se espanta que existam muitos futebolistas e músicos negros. E ainda assim — ou precisamente, por isso — existe imensa conflitualidade. Imagine-se o que acontecerá quando, em Portugal, essa realidade se disseminar por muitas outras áreas da vida colectiva e surgirem mais advogados, presidentes de câmara, políticos, enfim, negros a ocuparem lugares de poder e de decisão. Porque vai acontecer. Já está a acontecer. É inevitável e saudável que aconteça.
É verdade. Estou optimista. Prevejo muito mais incompreensões e reactividade de alguns sectores num futuro próximo, porque o racismo, para glosar o surpreso Jesus, vai continuar a estar na moda e a marcar presença no espaço público. E não é por acaso. É porque, claramente, os sujeitos racializados adquiriram lugar de voz. A primeira geração afrodescendente em Portugal não queria dar muito nas vistas, nem o país lhes permitia essa veleidade. Agora, estamos totalmente num outro período. Não espanta que tanta gente da geração de Jorge Jesus não entenda o que se está a passar à sua volta, quando os Maregas dos campos de futebol já não transigem com cânticos racistas e outras violências do género e abandonam os estádios.
Não, a luta anti-racismo não é uma moda. Não é um momento — é um processo que nitidamente entrou numa nova fase. E, sim, isso confunde muita gente, que se sente posta em causa e que nunca tinha pensado, ou sentido, o seu lugar como privilégio. Começam, muitas delas, a percebê-lo agora, porque têm à sua frente outros seres humanos que se permitem expressar, numa relação mais horizontal, olhos nos olhos, o que sentem, ou o que desejam para si, ou o que não estão dispostos a tolerar mais.
É um diálogo feito de inúmeras tensões? Inevitavelmente. É como se estivéssemos, outra vez, a aprender a comunicar. Não é acaso que existam tantas questões à volta da linguagem, da memória e dos símbolos. Como é evidente. A realidade já não é traduzível por um tipo de linguagem que não comporta que possam existir outros olhares, e novas camadas de entendimento, sobre a história. Adoptámos, com boas intenções, uma suposta linguagem de inclusão, que na verdade passa o tempo a excluir. Como é que se sai daqui?
Aceitando que a actual conflitualidade é quase inevitável, mas não eterna, porque Portugal, e outros países europeus ex-colonizadores, só agora estão a ser obrigados a lidar com as cicatrizes do passado. Já tivemos uma descolonização política. Falta encetar a descolonização de mentalidades.