Camarate, resposta a Cunha Rodrigues e a Barata-Feyo
Camarate será sempre um pomo de discórdia, fruto de uma investigação que não foi feita quando devia ter sido, provavelmente por razões de Estado. Mas que permaneça sentido de responsabilidade, respeito pela opinião contrária e estudo efectivo dos dados a que foi possível chegar-se.
Respeito a opinião dos que, fundadamente ou por intuição, entendem que o desastre de Camarate foi um acidente. Respeito Cunha Rodrigues e Barata‑Feyo, profissionais com pergaminhos indiscutíveis, um como magistrado, outro como jornalista. Na semana passada, Cunha Rodrigues lançou as suas Memórias Improváveis, com um capítulo sobre o assunto, noticiado no PÚBLICO do dia 7, a que se seguiu, no dia 8, um artigo de Barata‑Feyo, também sobre esse tema. Não posso ficar calado perante os erros e omissões de ambos. Em homenagem à memória dos que morreram e por fidelidade ao patrocínio que me foi confiado pelos seus familiares, tenho um indeclinável dever de repor a verdade.
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Respeito a opinião dos que, fundadamente ou por intuição, entendem que o desastre de Camarate foi um acidente. Respeito Cunha Rodrigues e Barata‑Feyo, profissionais com pergaminhos indiscutíveis, um como magistrado, outro como jornalista. Na semana passada, Cunha Rodrigues lançou as suas Memórias Improváveis, com um capítulo sobre o assunto, noticiado no PÚBLICO do dia 7, a que se seguiu, no dia 8, um artigo de Barata‑Feyo, também sobre esse tema. Não posso ficar calado perante os erros e omissões de ambos. Em homenagem à memória dos que morreram e por fidelidade ao patrocínio que me foi confiado pelos seus familiares, tenho um indeclinável dever de repor a verdade.
Cunha Rodrigues não se espraia sobre as razões da sua posição, o que até se compreende atenta a natureza memorialista do escrito. Marginalizo as referências indelicadas e injustas a Freitas do Amaral, Augusto Cid e Manuela Vaz Pires, que já não se podem defender. Mas não posso deixar passar em claro a sua defesa do rigor da actuação do Ministério Público (MP), nem a sua alegação de ela ter merecido confirmação judicial.
Durante 20 anos, a explicação oficial, sufragada pela Direcção-Geral da Aviação Civil (DGAC) e pelo MP, foi a de que o avião caíra devido à falta de combustível nos depósitos da sua asa esquerda. Todavia, enquanto a DGAC, tendo verificado os abastecimentos e os consumos, concluíra que isso só teria sido possível pela ocorrência de um furto, a Polícia Judiciária (PJ) descartou essa possibilidade e concluiu, sozinha e sem qualquer apoio técnico, que, afinal, a gasolina teria transitado, por um sistema de vasos comunicantes, para um depósito inoperacional. Anos mais tarde, numa das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), os técnicos da DGAC, confrontados pela primeira vez com essa mirabolante tese, afirmaram que isso seria tecnicamente impossível. Perante essa contradição absoluta, o MP nada fez para a esclarecer e manteve-se teimosamente agarrado a uma explicação absurda.
Foi o labor das CPI que permitiu expor as gravíssimas deficiências da investigação, a tal ponto que o último registo da justiça portuguesa, pelo acórdão, de 01/06/2000, da Relação de Lisboa, afastou expressamente a conclusão de que a queda do avião tivesse ficado a dever-se à falta de gasolina. É certo que o acórdão também concluiu no sentido de que só era possível apurar que o avião tinha caído, mas isso significa que Cunha Rodrigues e Barata‑Feyo não podem socorrer-se da autoridade judicial para justificar uma proposição que não tem defesa possível. Aliás, também não foi essa a última posição do MP, já que, após as conclusões da VIII CPI, Souto Moura, sucessor de Cunha Rodrigues, em 2005, reconheceu que os trabalhos daquela CPI justificariam a reabertura do processo judicial, o que só não veio a acontecer porque, entretanto, se verificou a prescrição do procedimento criminal.
Quanto a Barata‑Feyo, o estilo furibundo do seu artigo recupera as teses do seu livro de 2013 – O grande embuste –, título feliz porque particularmente bem adaptado à natureza da obra. O problema de Barata‑Feyo é o da falta de estudo das fontes primárias que o podiam ter esclarecido, tendo-se assim limitado fundamentalmente a respigar os despachos do MP e a decisão de não-pronúncia do Tribunal de Loures. De resto, é a própria bibliografia que o autor cita que esclarece definitivamente que assim foi. Barata‑Feyo não consultou o processo, não conhece directamente os testemunhos, as diligências e os relatórios que constam do processo, confiando acriticamente nas peças do MP. Particularmente chocante é que, tendo escrito o seu livro em 2013, não se tenha dado sequer ao trabalho de consultar e avaliar o mais importante texto produzido no âmbito das CPI, que foi o Relatório da Comissão Multidisciplinar de Peritos (CMP), produzido, em 2004, no âmbito da VIII CPI.
Barata‑Feyo parou no tempo em que Newton e Mason, contratados para participarem num programa televisivo da RTP, vieram a Portugal em 1982 e não apuraram a existência de sinais de sabotagem. Contudo, à época, em relação à aeronave, só se procuraram vestígios físicos da eventual deflagração de um engenho explosivo, os quais, como veio a ser pericialmente reconhecido, muito dificilmente podiam ter sido encontrados, atendendo ao grau de degradação e de corrosão dos seus materiais. Barata‑Feyo insiste em que é uma “redonda falsidade” terem sido encontrados estilhaços incrustados nos pés do piloto. Mas o irlandês Jack Crane e o espanhol Conchero Carro, os maiores especialistas em vítimas de acção de engenhos explosivos do IRA e da ETA, ouvidos nas CPI, foram claros no sentido de que a natureza, a forma, o tamanho, a heterogeneidade, a localização e o padrão de distribuição dos fragmentos encontrados em Jorge de Albuquerque e em Amaro da Costa só seriam compatíveis com uma acção explosiva. Perante a assinatura química de explosivos encontrada no denominado fragmento 7 pertencente ao Cessna sinistrado (como foi atestado pelo Laboratório de Polícia Científica e pelo Forensic Explosive Laboratory), Barata‑Feyo arruma a questão dizendo teria ocorrido um processo de contaminação. Contudo, o relatório da PJ, ordenado em 1995 pelo seu director, Mário Mendes, eliminou essa hipótese, tendo concluído, sem margem para dúvida, que “todos os ensaios efectuados obedeceram escrupulosamente aos quesitos de manuseamento exigidos pelas técnicas utilizadas, por forma a assegurar a fiabilidade dos resultados analíticos”.
Barata‑Feyo tem o direito de defender que não houve sabotagem do avião que caiu em Camarate, não pode é dizer que isso está suportado na opinião de mais de duas centenas de testemunhas, de uma centena de peritos e de deliberações de 32 magistrados. Isso é pura e simplesmente falso, não tendo qualquer correspondência com a realidade. Barata‑Feyo tem o direito de contraditar as provas obtidas por sucessivas CPI, com relatórios aprovados por deputados de todos os partidos políticos nelas representados, discutindo-os e divergindo deles. Mas não pode ignorar que, malgrado a sua convicção, existem indícios consistentes de que ocorreu uma sabotagem, como é partilhado por peritos nacionais e estrangeiros das mais variadas formações.
Se a única explicação plausível para o rasto dos fragmentos [que caíram do avião e se projectaram ao longo da sua rota] é a da ruptura da fuselagem, se a grande maioria das testemunhas oculares viu fogo na aeronave durante o voo [para o que não há outra justificação pertinente que não seja uma acção explosiva], se os estilhaços radiografados dos corpos de Jorge Albuquerque e de Amaro da Costa são coerentes com uma deflagração de um engenho explosivo [não o sendo, de forma aceitável, com outras leituras], se existem peças do avião com vestígios de explosivos [nada permitindo inferir que tenha havido contaminação], se não foi encontrada qualquer justificação para uma queda acidental do Cessna, então talvez possamos aceitar a conclusão da Comissão Multidisciplinar de Peritos: “a explicação plausível para o despenhamento da aeronave encontra-se, não em razões acidentais, mas sim no rebentamento – e correspondentes consequências – de um engenho explosivo que incapacitou a aeronave e/ou os seus tripulantes de condução de voo, uma vez que não só não se encontra qualquer indício que permita filiar tal rebentamento em qualquer anomalia dos equipamentos de bordo, como se consegue compatibilizar todo um conjunto de indícios reveladores de ter sido essa a causa adequada e necessária do despenhamento”.
É certo que não sabemos com a necessária segurança quem foram os autores e os mandantes do crime. Patrício Gouveia, num livro recente, explora com inteligência uma possibilidade, inserindo o que aconteceu numa reacção aos passos que Amaro da Costa dava contra os interesses de operadores de tráfico de armas ligados à guerra entre o Iraque e o Irão. Mas, como o próprio reconhece, é apenas uma hipótese, plausível, mas uma hipótese ainda sem comprovação.
Camarate será sempre um pomo de discórdia, fruto de uma investigação que não foi feita quando devia ter sido, provavelmente por razões de Estado. Mas que permaneça sentido de responsabilidade, respeito pela opinião contrária e estudo efectivo dos dados a que foi possível chegar-se. Eu, por mim, sigo o conselho de Sherlock Holmes: “Após se ter removido o impossível, aquilo que sobrar, por mais improvável que pareça, terá que ser a verdade.”