John Le Carré (1931-2020): um grande talento literário ao serviço do romance de espionagem
O escritor britânico, autor de livros como O Espião que Saiu do Frio ou A Toupeira , e criador do mais complexo espião de toda a literatura da especialidade, George Smiley, morreu este domingo, aos 89 anos, de pneumonia.
O escritor britânico e agente secreto John Le Carré, responsável por transformar o romance de espionagem numa arte literária de primeira grandeza, criando um mundo realista e convincente de burocracia e calculismo, de amizades fraternas e traições, de sordidez e heroísmo, morreu este domingo aos 89 anos, de pneumonia, num hospital da Cornualha, onde estava internado.
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O escritor britânico e agente secreto John Le Carré, responsável por transformar o romance de espionagem numa arte literária de primeira grandeza, criando um mundo realista e convincente de burocracia e calculismo, de amizades fraternas e traições, de sordidez e heroísmo, morreu este domingo aos 89 anos, de pneumonia, num hospital da Cornualha, onde estava internado.
Pseudónimo literário de David John Moore Cornwell, John Le Carré, cujos 25 romances estão todos traduzidos e editados em Portugal, estreou-se em 1961 com Chamada para a Morte, que introduz o discreto George Smiley numa bem urdida história semipolicial, que não prenuncia ainda inteiramente a capacidade de criar um mundo próprio que o autor mostrará em O Espião que Saiu do Frio (1963), adaptado ao cinema em 1965 por Martin Ritt, e sobretudo na magnífica trilogia de Karla, composta por A Toupeira (1974), O Ilustre Colegial (1977) e A Gente de Smiley (1979), não apenas um triunfo absoluto da literatura de espionagem, mas uma considerável façanha da narrativa de ficção do século XX.
Nascido em Poole, uma cidade portuária no condado de Dorset, no Sul de Inglaterra, em 1931, Le Carré começou a colaborar com os serviços secretos britânicos ainda no final dos anos 40, enquanto estudava na Alemanha e na Suíça, e serviu como oficial de informações após a II Guerra, tendo ainda ensinado durante algum tempo no tradicional colégio de Eton, uma escola interna para rapazes — ambiente que recupera especialmente em O Ilustre Colegial —, antes de ingressar no MI5 (serviços de segurança interna) e depois no MI6, os serviços secretos ingleses. Durante algum tempo foi responsável por recrutar e gerir espiões nos países de Leste, do outro lado da então Cortina de Ferro. Esteve colocado em Bona, que serve de cenário a Algures na Alemanha, o primeiro livro que publica depois de o sucesso de O Espião que Saiu do Frio, que Graham Greene considerou a melhor história de espionagem que jamais lera, lhe ter permitido deixar a função pública e dedicar-se a tempo inteiro à escrita.
Le Carré conheceu, pois, em primeira mão, se não as arriscadas missões no terreno que virá a descrever nos seus livros, pelo menos esse mundo do quartel-general londrino dos serviços secretos, a que as personagens dos seus romances chamam sugestivamente “o Circo”. É esse mundo deceptivo, nos antípodas da exuberante espionagem à Ian Fleming, o criador de James Bond, que constitui a sua marca de água, embora os dilemas morais do ofício fossem já um tópico recorrente nos livros de Graham Greene, também ele um antigo agente do MI6.
O mais notável feito literário de Le Carré é possivelmente a trilogia romanesca dita “de Karla”, assim chamada por ser esse o nome do oficial dos serviços secretos soviéticos com quem Smiley trava uma impiedosa batalha mental ao longo desses três romances, publicados entre 1974 e 1979. É também nestes volumes, embora surja noutros com papéis de relevância variável, que George Smiley se mostra em todo o seu discretíssimo esplendor e nos convence de que não há mesmo outra personagem na história da literatura de espionagem que possa realmente medir-se com este homem “baixo e roliço, com óculos pesados e cabelo ralo (...), protótipo do solteirão falhado de meia-idade com um emprego sedentário”, para transcrever a descrição que dele faz uma sua velha amiga em Um Crime Quase Perfeito (1962), o segundo livro do autor.
Se boa parte dos romances de Le Carré foram adaptados ao cinema, o primeiro e terceiro volumes desta trilogia deram origem também a uma memorável série da BBC, estreada em 1979, com Alec Guinness naquela que é possivelmente a interpretação canónica de George Smiley, apesar do notável papel de Gary Oldman no filme A Toupeira (2011).
Outros livros de Le Carré inspiraram séries televisivas, como o brilhante Um Espião Perfeito (1985) — uma complexa narrativa centrada na degradação moral e nos conflitos internos de um agente duplo, que um leitor tão exigente como Philip Roth considerou nada menos do que o melhor romance inglês do pós-guerra —, mas também O Gerente da Noite (1993) ou A Rapariga do Tambor, um extenso romance de 1983 que aborda o conflito israelo-palestiniano e que foi recentemente adaptado à televisão numa mini-série de 2018.
Depois de A Rapariga do Tambor e de O Espião Perfeito, o autor publicou, ainda nos anos 80, A Casa da Rússia, cuja popular adaptação ao cinema, com cenas filmadas em Lisboa, é protagonizada pelo recém-desaparecido Sean Connery. E em 1990 é publicado O Peregrino Secreto, um bom exemplo da diversidade de técnicas narrativas ao dispor de Le Carré, que neste livro cruza uma conversa de George Smiley num jantar informal com finalistas de uma escola onde são treinados futuros espiões com as memórias de um agente que se encontra presente, e que são desencadeadas pelos episódios que o orador vai evocando.
Outros romances de Le Carré, entre vários que se poderiam citar, incluem O Alfaiate do Panamá (1996), inspirado em O Nosso Agente em Havana, de Graham Greene, O Fiel Jardineiro (2001), que aborda a ganância e corrupção das multinacionais farmacêuticas, O Homem Mais Procurado (2008), vagamente baseado no caso real de um cidadão turco residente na Alemanha que alegou ter sido torturado pelos americanos na prisão de Guantánamo, ou Um Traidor dos Nossos (2010), que aborda temas como o dos circuitos de lavagem do dinheiro e a ascensão das máfias russas após o colapso da União Soviética.
Conhecido pela sua relutância em falar da sua vida privada, Le Carré surpreendeu ao publicar, em 2016, a autobiografia O Túnel de Pombos, na qual evoca uma infância difícil: abandonado aos cinco anos pela mãe, com quem só se reencontrou aos 21, viu-se nas mãos de um pai autoritário e de carácter duvidoso, que chegou a estar preso por fraude.
O seu último livro, Agente em Campo, saiu já em 2019, e mostra Le Carré, um europeísta convicto e um activo opositor do “Brexit”, a olhar criticamente para a actual política britânica, mas também para a América de Trump ou a Rússia de Putin.