Camarate e a Caixa de Pandora
O móbil, o verdadeiro móbil, ainda está por apurar. Mas existe um acumular de prováveis motivos aos quais Camarate deu solução a todos. Não sei se Camarate foi atentado, mas sei que não aconteceu por acidente.
Em Novembro de 2012, no livro que escrevi e intitulado Camarate – Sá Carneiro e as Armas para o Irão, Marcelo Rebelo de Sousa, então ex-líder do PSD e comentador político, deu-me o seguinte depoimento: “Como resultado dos trabalhos de sucessivas Comissões Parlamentares de Inquérito fiquei convencido da tese de atentado, que já suscitara a minha, embora ainda interrogativa, adesão quando, como membro do governo, lera todo o processo de Camarate.” Não há dúvidas de que, quando foi eleito Presidente da República, em 2016, já Marcelo Rebelo de Sousa assumira publicamente a sua convicção pessoal sobre a tese de atentado.
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Em Novembro de 2012, no livro que escrevi e intitulado Camarate – Sá Carneiro e as Armas para o Irão, Marcelo Rebelo de Sousa, então ex-líder do PSD e comentador político, deu-me o seguinte depoimento: “Como resultado dos trabalhos de sucessivas Comissões Parlamentares de Inquérito fiquei convencido da tese de atentado, que já suscitara a minha, embora ainda interrogativa, adesão quando, como membro do governo, lera todo o processo de Camarate.” Não há dúvidas de que, quando foi eleito Presidente da República, em 2016, já Marcelo Rebelo de Sousa assumira publicamente a sua convicção pessoal sobre a tese de atentado.
Entre os defensores da tese de acidente ainda ninguém, nem nenhum Tribunal, conseguiu demonstrar cabalmente que tipo de acidente foi. Terá sido mesmo a falha do motor esquerdo por falta de gasolina? Ou foi falha mecânica? Se sim, como explicar, por exemplo, o testemunho do chefe de segurança de Sá Carneiro, Manuel Inácio Costa, que fala de uma “bola de fogo” que envolveu o aparelho, ainda no ar?
Na altura de Camarate, eu era uma criança. Tinha oito anos. Confiei nos adultos para nos contar a verdade. Jornalistas como José Manuel Barata-Feyo, por exemplo, dizem que decidiram fazer uma reportagem porque era a sua “convicção” de que se tratava de um ato de sabotagem, mas a realidade dos factos levou à conclusão de que fora acidente.
Só que, em 1995, as dúvidas ainda existiam. E, como nessa altura já era jornalista, também investiguei Camarate. Em dezembro de 2000, por exemplo, assinei então no Tal&Qual um artigo intitulado “Intriga internacional matou em Camarate”, onde foi mencionada a hipótese de o móbil ter sido o tráfico de armas para Irão, tese essa agora desenvolvida, 20 anos depois, pelo irmão do chefe de gabinete de Sá Carneiro, Alexandre Patrício Gouveia. E, ao falar mais tarde com Augusto Cid, numa altura em que já se tinham passado 30 anos, ele disse-me que “tudo o que sabemos hoje sobre Camarate, já se sabia meia hora depois da queda do avião. Em 30 anos de investigação, confirmámos 30 minutos”.
Aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa diz, há mais de 30 anos que não é novidade nem o será quando daqui a dez anos houver o aniversário redondo do meio século. É novidade ser o Presidente da República a dizer isso. Mas aquilo que o Presidente da República poderia explicar é quem, na sua opinião pessoal, estará por detrás do atentado de que afirma estar convicto? Seria uma pergunta difícil, porque corremos o risco de abrir uma Caixa de Pandora. Teríamos de analisar, por exemplo, o papel do ex-Presidente da República Aníbal Cavaco Silva enquanto ministro das Finanças e do Plano sobre a atuação da Guarda Fiscal, a 26 de novembro de 1980, quando apreendeu os táxis aéreos que estavam em Tires, uma semana antes de Camarate.
Cavaco tinha a tutela da Guarda Fiscal desde 11 de Novembro – DL 552/80 – e essa apreensão, entretanto esquecida, permitiu que, na prática, ficassem afastados da campanha eleitoral os aviões dos irmãos Moreira. Em alternativa, tiveram de alugar ao empresário de Braga, Eurico Taxa, o único aparelho disponível no País para cumprir o calendário eleitoral: o avião Cessna que depois veio a cair em Camarate e que, segundo as descrições da altura, não oferecia muita confiança. Era o aparelho ideal para justificar um “acidente”.
Teríamos ainda de perguntar quem é que, no PSD, se lembrou de convocar um comício extra para o Porto? Sá Carneiro soube, já depois da apreensão dos aviões de Tires, em Évora, a 1 de dezembro, que teria de ir ao Porto. E de avião. Ou seja, ao contrário daqueles que acreditam que não havia tempo para preparar um atentado contra o primeiro-ministro, afinal sabia-se da viagem ao Porto no avião Cessna de Eurico Taxa com pelo menos três dias de antecedência. Uma semana até, se contarmos com a apreensão em Tires. E se mesmo entre os defensores da tese de atentado há quem diga que o alvo era Adelino Amaro da Costa, então frise-se que o ministro da Defesa só entrou naquele avião porque o primeiro-ministro ia ao Porto e não o contrário.
O móbil, o verdadeiro móbil, ainda está por apurar. Mas existe um acumular de prováveis motivos aos quais Camarate deu solução a todos. Lutas internas dentro do PSD contra a personalidade de Sá Carneiro, que vinham desde 1976, quando Mário Soares confessou ao embaixador Frank Carlucci, a 26 de Abril, logo após as primeiras eleições legislativas, que aceitaria fazer uma aliança pós-eleitoral com o PSD desde que Sá Carneiro não fosse o líder dos sociais-democratas – preferia Magalhães Mota. Sá Carneiro, em dezembro de 1980, mesmo com maioria absoluta recém-conquistada a 5 de outubro, ameaçava demitir-se caso Soares Carneiro perdesse as eleições contra Eanes. O mesmo Marcelo Rebelo de Sousa, aliás, explicou isso também no depoimento que me deu em 2012. Diz que falou com Adelino Amaro da Costa no dia fatídico e, “em rigor, quem deveria suceder a Sá Carneiro, no cenário de vitória de António Ramalho Eanes, seria Eurico de Melo e não Aníbal Cavaco Silva”.
O tráfico de armas para o Irão, furando o embargo internacional devido à crise dos reféns norte-americanos em Teerão, era outro problema, juntamente com a investigação ao Fundo Militar do Ultramar. Mas com a morte de Sá Carneiro, terminaram as resistências no PSD para um Bloco Central – uma realidade em 1983 –, terminaram as questões com Belém – o novo primeiro-ministro, Pinto Balsemão, nunca foi um Sá Carneiro contra Eanes –, e nunca mais se falou no Fundo Militar do Ultramar. O Conselho da Revolução, que Sá Carneiro tanto criticava, chama-se hoje Tribunal Constitucional. O negócio do tráfico de armas para o Irão deixou de ser ilegal passado um mês quando, a 20 de Janeiro de 1981, o novo presidente dos EUA, Ronald Reagan, mais o seu vice, o ex-chefe da CIA George Bush, tomaram posse e os reféns foram libertados logo a seguir. Não sei se Camarate foi atentado, mas sei que não aconteceu por acidente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico