Covid-19: OMS acusada de esconder relatório sobre resposta à pandemia em Itália
Documento criticava o “caos” da gestão inicial e notava que o plano para lidar com pandemias não era actualizado desde 2006. Responsabilidades caíam sobre ex-responsável do Governo italiano que é um dos vice-directores da OMS.
A Organização Mundial de Saúde está a ser acusada de conspirar com o Ministério da Saúde de Itália para fazer desaparecer um relatório que revelava o desgoverno da resposta inicial à pandemia neste país. Intitulado Um Desafio Sem Precedentes: A primeira resposta de Itália à covid-19, o documento assinado pelo cientista da OMS Francesco Zambon e por dez dos seus colegas europeus, visava partilhar informações com os países onde o novo coronavírus ainda não tinha chegado e impedir futuras mortes.
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A Organização Mundial de Saúde está a ser acusada de conspirar com o Ministério da Saúde de Itália para fazer desaparecer um relatório que revelava o desgoverno da resposta inicial à pandemia neste país. Intitulado Um Desafio Sem Precedentes: A primeira resposta de Itália à covid-19, o documento assinado pelo cientista da OMS Francesco Zambon e por dez dos seus colegas europeus, visava partilhar informações com os países onde o novo coronavírus ainda não tinha chegado e impedir futuras mortes.
A Itália foi o primeiro país na Europa a enfrentar o impacto abrupto da pandemia, em Fevereiro, quando em duas semanas passou de três doentes diagnosticados para perto de 18 mil e mais de 1200 mortes, tornando-se na nação com mais casos e mortes fora da China. Ainda é o país com mais mortes na Europa.
O relatório de 102 páginas foi publicado no site da OMS a 13 de Maio e retirado no dia seguinte, uma notícia avançada inicialmente pelo diário britânico The Guardian. Segundo os autores, Itália não actualizava o seu plano de resposta a pandemias desde 2006 e a resposta inicial dos seus hospitais foi “improvisada, caótica e criativa”.
O caso “embaraça toda a organização, até aos últimos andares da sede de Genebra”, escreve o jornal italiano La Repubblica sobre a OMS.
O relatório terá sido removido do site a pedido de Ranieri Guerra, director-geral adjunto da OMS para Iniciativas Estratégicas, que é também membro da task-force para a covid-19 no Governo italiano. Guerra foi director-geral para a Saúde Preventiva no Ministério da Saúde de Roma entre 2014 e 2017, pelo que seria sua a responsabilidade de renovação do plano pandémico. Em vez de o actualizar de acordo com as novas directrizes da OMS e do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, limitou-se a “reconfirmar” o plano existente, em 2017.
“A equipa confirmou isto minuciosamente e descobriu que todos os planos que surgiram depois de 2006 eram só cópias dos anteriores – nem uma palavra nem uma vírgula estavam mudadas no texto”, diz Francesco Zambon, ouvido pelo Guardian.
Este plano desactualizado é central nas investigações preliminares do Ministério Público de Bérgamo, a província da Lombardia que foi a mais atingida na chamada primeira vaga da pandemia, que vão decidir se há matéria para avançar com acusações criminais por negligência.
Os procuradores já tentam ouvir Zambon por três vezes nas últimas semanas, mas a OMS tem negado, argumentando que todos os cientistas envolvidos na produção do relatório gozam de imunidade. Só Guerra foi ouvido uma vez, no início de Novembro, mas o conteúdo da audiência não foi tornado público. Segundo a OMS, fê-lo “a título privado”.
Ameaças de despedimento
“Quando recebi a primeira intimação informei o Gabinete Legal da OMS e rapidamente eles me responderem que eu não podia ir porque estava protegido pela imunidade, apesar de eu querer ir e ter coisas a dizer”, disse Zambon ao Guardian. O cientista diz que Guerra o ameaçou com despedimento se não alterasse a parte do documento que se referia ao plano desactualizado – e que apesar de ter informado disso os seus superiores, não houve nenhum inquérito interno.
Depois de ter ficado em silêncio sobre os motivos para remover o relatório, a OMS emitiu um comunicado a semana passada explicando que o documento “continha imprecisões e inconsistências”.
Segundo Zambon, um mês antes da publicação foi enviado um esboço para Guerra e esta partilhou-o com o ministro da Saúde, Roberto Speranza.
"Precisamos do Ministério feliz"
Emails enviados para Zambon por Guerra e por Hans Kluge, o director da OMS Europa e autor da introdução do relatório, parecem reflectir um pacto feito com o Ministério italiano para manter as conclusões em segredo. Os emails surgiram num documentário recente do Report, o programa de investigação do canal 3 da televisão pública Rai.
Guerra diz a Zambon para “não esquecer” que “eles acabaram de nos dar 10 milhões como contribuição voluntária numa base de confiança e como reconhecimento do que fizemos até agora”. Num email enviado a Zambon a 15 de Maio, Kluge diz que “o ministro ficou muito desapontado” e termina afirmando que vai escrever ao Ministério para estabelecer um grupo de peritos” conjunto para rever o documento. “O Kuwait [país que financiou o relatório] está feliz, agora precisamos do MoH [Ministério da Saúde] feliz…” termina.
Dez mil mortes evitáveis
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Luigi Di Maio, afirmou esta semana que é “contra imunidades”. Já o Ministério da Saúde desmente qualquer envolvimento, garantindo que nunca “recebeu ou comentou” qualquer documento oficial da OMS. Numa entrevista recente, o ministro Speranza defendeu que agência “deve ser reformada e fortalecida para aumentar a transparência”.
“A Itália não estava preparara para a covid, houve muito improviso… precisamos de saber por que é que tivemos tantas vítimas em comparação com outros países”, afirmou esta semana ao Corriere della Sera Antonio Chiappani, o principal procurador a ocupar-se da investigação em Bérgamo.
A par do plano desactualizado, os investigadores centram-se num relatório compilado no fim da primeira vaga pelo general na reforma Pier Paolo Lunelli, onde se conclui que até dez mil mortes poderiam ser atribuídas à falta de protocolos anti-pandemia suficientes.
As mortes relacionadas com a covid-19 em Itália ultrapassaram as 60 mil mortes no domingo.