Labirinto da saudade
Andamos pois de labirinto em labirinto à espera de encontrarmos uma saída. Nos tempos que correm, creio que já nos contentaríamos em voltar apenas um ano atrás.
Partiu um dos grandes, dos maiores de todos nós, partiu Eduardo Lourenço aos 97 anos de idade. Curioso fenómeno o de acharmos que os vultos da nossa cultura são sempre imortais e vão estar sempre entre nós, e de facto o seu legado assim os torna. Mas é este sentimento que os torna grandes e que nos mostra a falta que nos fazem os que pensam Portugal.
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Partiu um dos grandes, dos maiores de todos nós, partiu Eduardo Lourenço aos 97 anos de idade. Curioso fenómeno o de acharmos que os vultos da nossa cultura são sempre imortais e vão estar sempre entre nós, e de facto o seu legado assim os torna. Mas é este sentimento que os torna grandes e que nos mostra a falta que nos fazem os que pensam Portugal.
Eduardo Lourenço foi o maior ensaísta português do século XX, tornando-se conhecido de todos com O Labirinto da Saudade.
Excelente mote para uma resenha dos últimos e mais mediáticos acontecimentos, quando nos aproximamos do fim de um ano tão atípico quanto imprevisto e que não nos deixará, certamente, saudade alguma.
De entre os temas que têm merecido nos últimos dias maior destaque e reação da opinião pública, reúno aqui alguns dos que, parecendo que nos levariam a uma saída, facilmente se convertem em labirintos que não levam a lado nenhum.
O labirinto constitucional
Não é preciso estar sempre a dizer que estamos a braços com uma pandemia e que tudo devemos fazer para impedir a sua disseminação. Mas há quem se ache acima do comum dos mortais, e insista, persista e teime em ter um regime de excepção. Sempre fundado numa lei com mais de 40 anos, que todos sabemos que merecia ajustes, até os próprios beneficiários, mas confundem a legitimidade constitucional com a legitimidade moral. O dever de um partido como o PCP, e os demais com assento na AR, é o de dar o exemplo, o bom exemplo, e não a teimosia em ter razão. Foi assim no 1.º de maio, depois na Festa do Avante! e agora no congresso nacional. E para quê? Havia algum tema urgente ou assunto a tratar que não pudesse ter sido realizado em versão online como tantos outros eventos políticos? O que saiu deste congresso, afinal? Que tema? Que novidade? Que ladainha que não tivesse já acontecido em 2019, em 2018 e por aí fora? O PCP entrou definitivamente num labirinto que o enreda cada vez mais em si mesmo, sem exemplo moral porque tudo tem que ser revolução, mesmo quando o resto do país se une para combater um inimigo comum. Estes episódios são apenas provas de vida de um partido que se vai extinguindo na medida da sua ultrapassada visão do país.
O labirinto da presunção
Um punhado de empresários da restauração vieram para a rua legitimamente chamar a atenção da opinião pública e do poder político para a sua delicada situação. Muitos proprietários de restaurantes estão à beira da ruptura, quando já não tenham efetivamente sucumbido à grave crise que os afecta mais do que à grande maioria das profissões (se bem que haja outros em situação similar). Nada contra! É legítimo e é compreensível. Na linha da frente, uma figura mediática, quanto polémica, Ljubomir Stanisic. Não faltaram as vozes do costume, com ataques xenófobos inqualificáveis à posição por si assumida. Mas o que à primeira vista parecia uma atitude heróica e solidária, rapidamente se tornou numa ridícula espiral de presunção com contornos radicais: primeiro, quando comparou o primeiro-ministro, António Costa, a Slobodan Milosevic, um ditador, um tirano, um criminoso. Uma comparação abjecta. Depois, após alguns dias de greve de fome, recebeu a visita do líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, bem-intencionada e em moldes normais para a atividade política e partidária, e o que se viu foi um destratamento asqueroso e sobranceiro que é impossível ficar-se indiferente. Goste-se ou não, apoie-se ou não, o visado.
O que parecia uma luta legítima, uma atitude estóica, rapidamente se tornou num labirinto de presunção que seguramente dificultará ao polémico chef uma saída em ombros.
O labirinto presidencial
A recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa era o segredo nacional mais mal guardado da nossa atualidade política. Não se compreende o que levou Marcelo Rebelo de Sousa a alimentar um tabu que todos sabiamos ser inexistente. Era sabido e mais do que sabido que seria sempre recandidato e considero “menos chique” e ofensivo para os portugueses que tenha persistido em jogar este jogo ridículo. Os portugueses mereciam um tratamento com maior formalidade de um Presidente que, pelos vistos, conquistou a sua simpatia.
Anunciar formalmente a sua recandidatura tardiamente, nos termos em que o fez, pesaroso, sacrificial, sem ânimo e sem qualquer “bandeirinha ou projeto" eleitoral, transformou-o no mártir obrigado a ir a votos cuja missão única é apenas “salvar-nos a todos”.
O professor insiste em passear-se no seu próprio labirinto onde mais ninguém entra e onde só ele ‘reina’.
Não posso também deixar de demonstrar a minha total perplexidade a propósito das palavras do Presidente da República, na passagem dos 40 anos sobre a morte de Francisco Sá Carneiro (que aproveito também para lembrar e homenagear pela fortaleza que representou no seu tempo, e cujo legado político ainda hoje se reconhece).
Ora, o professor Marcelo, dado que deve ter-se esquecido por breves momentos que é Presidente da República, decidiu verbalizar um pensamento ao nível do cidadão comum. Com ar distraído e singelo, emana a sua convicção e sentimento em relação a Camarate. Verbalizou, na televisão, ao vivo e a cores, ser sua convicção ter sido um atentado. Ou seja, na prática significa que em Portugal, lá por volta dos anos 80, matou-se um primeiro-ministro e mais uns tantos e “ninguém nunca” descobriu nada e foi mesmo o Presidente da República a dizê-lo. Lindo e de fazer tremer as pernas.
Andamos pois de labirinto em labirinto à espera de encontrarmos uma saída. Nos tempos que correm, creio que já nos contentaríamos em voltar apenas um ano atrás, e já não seria tão mau. É que este é um annus horribilis que queremos que passe depressa. Só esperemos que o próximo nos traga a normalidade... este é o nosso labirinto da saudade.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico