Teste serológico português prepara-se para chegar ao mercado
Teste de detecção de anticorpos contra o vírus da covid-19 foi desenvolvido por cinco institutos de investigação científica em Portugal. O que começou por ser uma ideia na cabeça dos cientistas passou, em seguida, para a bancada dos seus laboratórios e agora será levado ao mercado por uma empresa farmacêutica portuguesa.
Em Março, cinco institutos de investigação científica portugueses tinham-se juntado num consórcio com um objectivo em mente: criar um teste serológico que detectasse anticorpos no sangue dirigidos ao novo coronavírus. Oito meses depois, o consórcio anuncia que tem mais um parceiro – a empresa farmacêutica portuguesa Medinfar – que vai avançar com a produção industrial e a comercialização do teste serológico. As instalações de fabrico estão em construção e o pedido de produção e distribuição ao Infarmed, Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, seguirá em Janeiro.
Além do acordo de licença deste teste ao SARS-CoV-2 com a Medinfar, o consórcio comunica que todas as proteínas do vírus produzidas durante a fase de desenvolvimento do protótipo irão ser disponibilizadas, de forma gratuita, a centros de investigação portugueses e dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP). Poderão utilizá-las em estudos académicos do novo coronavírus, bastando solicitá-las ao Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) e pagar apenas as despesas de envio.
Inicialmente, do consórcio Serology4Covid faziam parte o IGC; o Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa; o Centro de Estudos de Doenças Crónicas (Cedoc) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; o Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) da Universidade Nova de Lisboa; e o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (IBET). Nessa fase, a iniciativa teve apoios financeiros do Fundo de Emergência Covid-19 da Fundação Calouste Gulbenkian, da Sociedade Francisco Manuel dos Santos e da Câmara Municipal de Oeiras.
Pouco depois juntou-se-lhes a Medinfar, que concorreu com o projecto do teste serológico a financiamento europeu do programa Portugal 2020. Em Julho, a empresa obteve, como a proponente dessa candidatura, 884 mil euros, sendo o consórcio Serology4Covid representado aí apenas pelo IGC e o IBET. De financiamento próprio, a Medinfar acrescentará ao projecto outros 221 mil euros.
Logo em Abril, quando o consórcio foi notícia, foi dito que os cinco institutos da zona de Lisboa queriam encontrar um parceiro na indústria biotecnológica que produzisse o teste em massa. Estava-se no início da pandemia, declarada como tal a 11 de Março pela Organização Mundial da Saúde, e havia pouquíssimos testes serológicos para o novo coronavírus, identificado apenas no final de 2019. Os poucos que havia eram maus, como os que Espanha chegou a comprar.
“Na altura, achámos que era importante haver um teste serológico e gostaríamos que fosse disponibilizado a outras entidades académicas e comercializado”, recorda agora, a propósito desse duplo objectivo, Mónica Bettencourt-Dias, directora do IGC, em Oeiras. “Queremos comercializá-lo porque não se consegue fazer chegar um teste à população em massa sem ser comercializado. É a ligação entre a academia e a indústria. É ganhar escala para chegar a todo o mercado português.”
Enquanto decorriam as conversas com a Medinfar, o teste serológico desenvolvido pelos cientistas foi sendo utilizado pelo consórcio em diversos estudos. Por exemplo, o IGC aplicou-o num projecto-piloto com a Câmara Municipal de Almeirim; o IMM em projectos com o Centro Hospitalar Lisboa Norte, a Faculdade de Medicina de Lisboa e o Instituto Português do Sangue e Transplantação; e o Cedoc no rastreio serológico à comunidade da Universidade Nova de Lisboa. “Fizemos cerca de 14 mil testes no contexto dos nossos institutos associados ao consórcio”, resume Mónica Bettencourt-Dias.
Avaliar a imunidade
“Como o teste é muito bom, vai ser importante agora no contexto de estudos epidemiológicos”, sublinha a investigadora a olhar para o futuro. “Permite saber se a pessoa tem anticorpos, se teve o vírus sem saber, como a doença passa de um lado para o outro, como evolui na população, se o pessoal da saúde está protegido…” Por outras palavras, permitirá, em estudos epidemiológicos, determinar até que ponto a imunidade ao novo coronavírus já se encontra difundida pela população, em consequência da resposta do nosso sistema imunitário a este agente patogénico.
A sensibilidade do teste é de 95,9% e a especificidade de 99,3%, adianta a directora do IGC. Significa isto, em relação à sua sensibilidade, que em 100 pessoas que se sabe estarem infectadas, o resultado deste teste dará falsos negativos em cerca de quatro. Quanto à especificidade, em 100 pessoas sem infecção, haverá falsos positivos em menos de uma pessoa.
Para fazer o teste serológico, é preciso recolher sangue e depois procurar no soro sanguíneo anticorpos contra o SARS-CoV-2. Se existirem anticorpos, então algures no tempo houve a infecção, mesmo que assintomática, que accionou a produção de moléculas de defesa pelo sistema imunitário dirigidos especificamente ao novo coronavírus. É preciso dar tempo ao corpo para reagir contra o vírus, uma vez que os anticorpos não surgem nos momentos muito iniciais da infecção.
Este tipo de teste, que não nos diz se o vírus ainda está no corpo da pessoa, é diferente dos testes baseados na técnica de PCR (reacção em cadeia da polimerase). Estes últimos é que procuram a presença de material genético do próprio coronavírus (o seu ARN) no organismo da pessoa na altura da recolha de fluidos no nariz e na garganta com uma zaragatoa. Se houver material genético do vírus nestas amostras, então existe a infecção nesse momento e é este tipo de teste (à molécula de ARN) que é utilizado para fazer o diagnóstico. Em suma, o teste da zaragatoa é mais indicado para diagnosticar quem está infectado, enquanto o teste serológico é mais indicado para avaliar, posteriormente à infecção, se se criou imunidade ao vírus a nível individual e de grupo, adquirida seja pela infecção, seja pela vacinação.
“Quando as pessoas forem imunizadas na campanha de vacinação, vai ser importante perceber se realmente desenvolvem anticorpos contra o vírus. Se quisermos avaliar a eficácia da campanha de vacinação, é com um teste serológico”, destaca Mónica Bettencourt-Dias. A este propósito, a biomédica Mariana Almeida, responsável pelo desenvolvimento farmacêutico e inovação do grupo Medinfar, reforça o papel do teste serológico: “Estamos na iminência de ter uma vacina. Este dispositivo é crítico em estudos que vão avaliar a resposta imunitária. Ninguém sabe qual é a duração da resposta imunitária.”
Aposta é no mercado nacional
Surgido nos laboratórios de investigação dos cinco parceiros iniciais do consórcio, o teste está já a ser transferido para a produção em massa. “Nós fizemos a nossa parte e desenvolvemos o teste. A Medinfar vai fazer a parte deles, que é a produção à escala industrial, o processo regulatório e a comercialização”, explica Mónica Bettencourt-Dias. “Fizemos um acordo com a Medinfar em que lhes damos o conhecimento e a garantia de que está tudo a funcionar.” O IGC e o IBET, em nome do consórcio, é que vão continuar a apoiar a Medinfar no processo de transferência do teste.
Durante o desenvolvimento do protótipo, cada parceiro do consórcio esteve incumbido de certas tarefas. A cargo do IBET ficou a produção do antigénio do novo coronavírus. Um antigénio é uma substância estranha ao organismo que desencadeia a produção de anticorpos pelo nosso sistema imunitário. No caso de que estamos a falar, o antigénio é um pedacinho do SARS-CoV-2 – de uma das suas proteínas – que se encontra à superfície do vírus. Os outros parceiros do consórcio utilizaram depois esse fragmento do vírus para desenvolver o resto do teste e validá-lo em amostras de soro sanguíneo, para evitar falsos positivos e falsos negativos.
Que contrapartidas receberão os cinco parceiros iniciais, em troca deste conhecimento? “Para nós, a garantia mais importante é que houvesse um compromisso da parte da Medinfar de que o produto ia mesmo chegar ao mercado português. Pode vendê-lo lá fora, mas a ideia é levá-lo ao mercado nacional”, responde Mónica Bettencourt-Dias. Além deste compromisso, não haverá pagamentos, pelo menos em relação ao mercado português. “Se for vendido no mercado internacional, então haverá uma contrapartida também, mas não no mercado nacional.”
Para já, a Medinfar diz estar interessada em fabricar o teste apenas à escala do território português. “Neste momento, estamos só focados em Portugal. O nosso maior objectivo foi suprimirmos as necessidades do mercado”, garante Mariana Almeida. “Se fizermos a exportação do kit, aí existirão royalties”, admite, esclarecendo que os restantes parceiros de consórcio serão ressarcidos com o financiamento obtido no Portugal 2020 consoante as tarefas executadas durante o desenvolvimento do teste.
Mas se no início da pandemia havia que dar resposta à escassez de testes serológicos, agora já há vários a nível mundial. Ainda assim, a empresa farmacêutica quer comercializá-lo pela inovação que representará. “A Medinfar vai ter capacidade de desenvolver testes serológicos. Não tínhamos este know how. Existem muitos players, mas este projecto vem reforçar a capacidade de inovação e posicionar a Medinfar num lugar de destaque no mercado nacional”, refere Mariana Almeida.
Instalações em obras na Amadora
A empresa já está a construir na zona da Amadora, onde tem o seu campus, as instalações destinadas ao fabrico do teste. Terão pressão negativa e receberão um robô vindo de Barcelona no final deste mês, que vai fabricar o teste seguindo o protocolo definido pelos cientistas do consórcio. “O laboratório que estamos a construir vai ficar pronto no final do ano”, assegura Mariana Almeida.
O teste far-se-á em placas de plástico com 96 poços, comuns em qualquer laboratório. É um célebre teste ELISA (ensaio de imunoabsorção enzimática), que permite a detecção de proteínas, como é o caso dos anticorpos. Mas, na placa deste teste ELISA específico para o SARS-CoV-2, o robô inoculará em cada poço o antigénio do novo coronavírus – o tal pedacinho que desencadeia uma resposta imunitária dirigida concretamente a este vírus. Depois, o soro sanguíneo de quem se está a testar é colocado na placa de plástico e, se tiver anticorpos, ocorre a ligação ao antigénio. Cada anticorpo une-se ao antigénio, tal como há uma chave para cada fechadura.
“A placa de plástico é universal, o que colocámos lá dentro é que é o que queremos avaliar ou quantificar”, resume Mariana Almeida. “Uma das grandes vantagens deste teste, em comparação com outros, é que permite ver a quantidade de anticorpos. Muitos só indicam se há ou não há anticorpos”, salienta, por sua vez, Mónica Bettencourt-Dias.
Como se depreenderá pela descrição, destina-se à venda directa a laboratórios de análises clínicas e a hospitais. “Não é um teste para ser feito em casa”, especifica Mariana Almeida. E o preço? “Ainda estamos a averiguar o custo industrial de cada unidade, para aferir o preço de venda ao consumidor final.”
À pergunta quando chegará finalmente ao mercado, a biomédica da Medinfar não se quer comprometer com uma data, uma vez que o Infarmed ainda terá de autorizar a produção e distribuição do teste. “Estamos neste momento a construir um dossier do dispositivo médico que vamos submeter ao Infarmed em Janeiro. Só depois de termos a avaliação positiva do Infarmed podemos comercializá-lo.” Ainda assim, antecipa um processo rápido. “Acredito que as respostas vão ser muito céleres, tudo tem sido bastante rápido.”