O desafio que começou num artigo científico

Criticados, por vezes, pela pressa em partilhar informação sem a revisão prévia de outros cientistas, um desses artigos foi o ponto de partida até a um teste serológico português.

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Modelo do novo coronavírus com os característicos picos à superfície; Foto: Visual Science

Tudo partiu de um artigo científico divulgado num repositório de publicações ainda não revistas pelos pares. Os cientistas chamam-lhes pré-publicações. Um grupo de cientistas portugueses leu essa pré-publicação e eis que, partindo dessa informação, se lançou na aventura de desenvolver um teste serológico made in Portugal.

Nessa pré-publicação, a equipa do virologista Florian Krammer – da Escola de Medicina Icahn do Hospital do Monte Sinai, em Nova Iorque, Estados Unidos – relatava que tinha isolado as sequências de um gene envolvido na codificação de uma proteína importante do novo coronavírus, mal o seu genoma foi tornado público a 10 de Janeiro por cientistas chineses. Essa proteína viral é aquela que dá um ar ao vírus salpicado de picos à superfície. É a proteína da espícula, ou spike.

O vírus usa-a para entrar nas células humanas, em particular uma parte da proteína que se chama “domínio de ligação ao receptor” (o receptor está à superfície das células humanas). A proteína da espícula funciona como uma chave; e o receptor é a fechadura. O vírus usa a espícula para se ligar à fechadura, de forma a entrar nas células humanas e replicar-se.

Ora a equipa de Florian Krammer utilizou a proteína da espícula como antigénio, que é uma substância que o organismo reconhece como estranha e desencadeia a produção de anticorpos (moléculas) pelo sistema imunitário contra ela. Os cientistas pegaram então nas sequências genéticas da proteína espícula – tanto inteira como apenas da parte do domínio de ligação ao receptor – e colocaram-nas dentro de um plasmídeo. Como os plasmídeos são fragmentos de ADN de forma circular, geralmente bacterianos, que podem ser modificados juntando-se-lhes novos fragmentos de ADN, constituem uma ferramenta útil para inserir material genético em células-alvo.

Recorrendo aos plasmídeos, introduziram a sequência genética da proteína da espícula do novo coronavírus em células humanas. E as células passaram a fabricar esses pedacinhos do vírus.

No final, a 18 de Março, a equipa de Florian Krammer revelava ao mundo inteiro o protocolo que seguiu na tal pré-publicação, no repositório medRxiv. Desta forma, em qualquer parte do planeta outros cientistas poderiam repetir a produção dos bocados do vírus que estava a causar uma nova doença (a covid-19) e desenvolver testes de detecção dos anticorpos no sangue. Como o nosso sistema imunitário produz anticorpos à medida de cada agente patogénico, um teste que os detecte viria ajudar a compreender e combater o novo vírus.

Mais: a equipa de Florian Krammer disponibilizava-se, na pré-publicação, a enviar a quem pedisse os plasmídeos desenvolvidos no seu laboratório. Em muitas partes do mundo, a boa vontade da equipa norte-americana teve eco. Incluindo em Portugal, onde cinco institutos de investigação científica se juntaram em consórcio (Serology4Covid) para desenvolverem, partindo desses plasmídeos, um teste serológico.

Chegavam a Portugal gotinhas dos plasmídeos embebidas num papel de feltro laboratorial. Um dos parceiros do consórcio, o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (IBET), em Oeiras, pegou nesses plasmídeos e começou a produzir a proteína da espícula do novo coronavírus em quantidade suficiente, de forma a que os outros parceiros do consórcio pudessem em seguida desenvolver o resto do teste.

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A investigadora Paula Alves

Em Oeiras, tal como nos EUA, os plasmídeos foram introduzidos em células humanas. A engenheira bioquímica Paula Alves, directora do IBET, explicava em Abril ao PÚBLICO que eram células humanas que iam fabricar os bocados do vírus e por que razão isso era importante na boa ligação entre o antigénio e o anticorpo num teste serológico. “As células humanas são usadas como fábricas: com elas conseguimos produzir a proteína o mais próximo possível da realidade do vírus quando infecta as células.” A directora do IBET destacava ainda que um teste serológico made in Portugal evitaria a dependência das cadeias de fornecimento e permitiria ao país ser auto-suficiente.

A aventura do teste está agora a ganhar contornos industriais através da Medinfar, empresa farmacêutica portuguesa, que fabricar para venda no mercado. O IBET continuará a produzir o antigénio do kit para a Medinfar, numa relação comercial entre ambos, agora como “matéria-prima”, informa Mariana Almeida, responsável pelo desenvolvimento farmacêutico e inovação daquele grupo farmacêutico. O que o kit português contém, explica Mariana Almeida, é apenas o domínio de ligação ao receptor da espícula do SARS-CoV-2. Ou seja, um bocadinho de um bocadinho do vírus.