“Brexit”: o acordo
O acordo do “Brexit” é o derradeiro capítulo de uma história que começou mal, entretanto ganhou vida própria, e que vai acabar por nos deixar a todos com menos opções, mais complicações para resolver e menos esperança em soluções razoáveis.
Escrevo esta coluna antes de se saber se se chegou, finalmente, a acordo sobre os termos da saída do Reino Unido da União Europeia. O facto é que, com ou sem acordo, o Reino Unido vai sair da UE no final do ano. Com ou sem acordo, a verdade é que o dia 1 de janeiro de 2021 marca um novo começo na vida dos cerca de 400 mil portugueses que se estima residirem atualmente nas ilhas britânicas, uma nova fase nas relações comerciais entre o Reino Unido e o nosso país, e um novo capítulo na história da integração europeia. Não tenhamos dúvidas. A próxima presidência portuguesa da UE coincide com o início de uma nova União – mais pequena, mais continental, e onde o peso relativo de Paris e Berlim vai aumentar em qualquer negociação multilateral. Como é que chegámos aqui?
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Escrevo esta coluna antes de se saber se se chegou, finalmente, a acordo sobre os termos da saída do Reino Unido da União Europeia. O facto é que, com ou sem acordo, o Reino Unido vai sair da UE no final do ano. Com ou sem acordo, a verdade é que o dia 1 de janeiro de 2021 marca um novo começo na vida dos cerca de 400 mil portugueses que se estima residirem atualmente nas ilhas britânicas, uma nova fase nas relações comerciais entre o Reino Unido e o nosso país, e um novo capítulo na história da integração europeia. Não tenhamos dúvidas. A próxima presidência portuguesa da UE coincide com o início de uma nova União – mais pequena, mais continental, e onde o peso relativo de Paris e Berlim vai aumentar em qualquer negociação multilateral. Como é que chegámos aqui?
A história do “Brexit” tem vários rostos. Do lado inglês, começa com Nigel Farage e David Cameron, inclui Theresa May e Jeremy Corbyn, e termina com Boris Johnson. Do lado europeu, como é da sua própria natureza, os rostos são mais difusos. A Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu foram sempre mais um símbolo do que estava em jogo do que outra coisa. Mas, diga-se em abono da verdade, que o facto de não haver um rosto humano a representar a UE ajudou, e muito, a propagar a ideia de opacidade que tantos em Inglaterra associam ao termo político “Bruxelas”.
O rosto de Farage está nesta história muito antes de se falar em “Brexit”. Ocupou um espaço político nas franjas do Partido Conservador com a causa anti-europeísta e por lá teria continuado se não fosse por Cameron. Foi Cameron, que organizou três referendos nos cinco anos em que esteve em Downing Street, que abriu as portas do poder a Farage. Não que Farage algum dia tenha querido governar o que quer que seja. O projeto de Farage, se aquilo que o move pode ser chamado de projeto, sempre foi definido pela negativa – desfazer os laços com a Europa, por ele tornada símbolo de todas as frustrações, pulsões e ansiedades de uma sociedade a braços com os desafios da globalização. Mas foi a preferência de Cameron por referendar escolhas políticas fundamentais que determinou o seu destino. Ganhou os dois primeiros referendos (Escócia, sistema eleitoral), perdeu o terceiro. E com ele a sua carreira política. A ideia de referendar a permanência do Reino Unido na UE definiu a carreira política de Cameron; na verdade, aniquilou-a. Cameron vai ficar para sempre associado a esta jogada de alto risco, originalmente concebida para neutralizar a franja anti-europeísta entre os conservadores e que acabou por resultar no oposto, arrastando consigo o resto do país.
Theresa May e Jeremy Corbyn repartem as responsabilidades no que se passou a seguir. A campanha a favor da permanência na UE falhou por várias razões, mas acima de tudo pela incapacidade que quer o governo conservador, quer a oposição trabalhista demonstraram em conjugar esforços numa causa comum. Claro que falar em causa comum neste caso é complicado. May fez campanha pela permanência depois de anos como ministra da Administração Interna a alimentar o discurso anti-imigração que viria a estar no centro da campanha pela saída. Já Corbyn manteve a mesma duplicidade com o projeto europeu que sempre o caracterizou desde os anos 80: nominalmente a favor da permanência, mas realmente a desejar que o Reino Unido nunca tivesse entrado na União Europeia. O resultado: 17 milhões de eleitores votaram “Brexit” no referendo de 23 de junho de 2016.
O último rosto desta história é o de Boris Johnson. A campanha eleitoral no Outono de 2019 que lhe deu uma confortável maioria parlamentar e a saída de Corbyn da cena política foi, no fundamental, um segundo referendo, agora sobre os termos do próprio “Brexit” – e a maioria do eleitorado escolheu um “hard Brexit”. Por isso, sem surpresa, é um acordo extremamente limitado aquele que ambas as partes têm agora para negociar. Um acordo que, segundo um estudo recente, pode a longo-prazo vir a ser duas ou três vezes mais prejudicial à economia do Reino Unido do que a pandemia da covid-19.
Na realidade, qualquer acordo de saída da UE seria sempre um mau acordo para a economia do Reino Unido. Qualquer que seja o acordo firmado, será sempre pior do que a permanência no clube europeu. Paradoxalmente, ainda que os detalhes do acordo venham a definir as regras do jogo durante pelo menos uma geração, o mais importante não são os detalhes; o mais importante foi a decisão política de sair da União Europeia.
É importante não esquecer o contexto em que esta decisão teve lugar. Há trinta anos, falava-se do fim da história para marcar a vitória absoluta da democracia liberal sobre as ditaduras comunistas. Há vinte anos, começou-se a escrever sobre o regresso da história com nacionalistas ou populistas. De há dez anos para cá, a história é a do fim da democracia representativa.
O “Brexit” é, de certa forma, reflexo deste contexto. Um contexto em que a crise da democracia representativa abriu caminho a um novo tempo: o da democracia plebiscitária. Nos dias que correm, as eleições são cada vez mais referendos. A lógica dominante é a lógica binária de “a favor ou contra”. O ciclo político inaugurado entre nós em 2015 por António Costa, com dois grandes blocos ideológicos, insere-se nesta tendência. Em França, a vitória de Macron em 2017 sobre Marine Le Pen foi menos um reflexo da confiança do eleitorado de que ele tinha as respostas para os problemas do país e mais porque a maioria dos eleitores franceses não desejava ver Le Pen no poder. A eleição de Trump em 2016 foi um vigoroso “não” a Washington DC e tudo o que a capital representa – acontece que, quatro anos volvidos, uma outra maioria disse “não” a Trump. Mas não disse “sim” a uma solução de compromisso. Numa América mais polarizada do que nunca, o tempo dos compromissos acabou há muito.
Este é o problema das soluções plebiscitárias. Não permitem soluções de compromisso. Transmitem uma ideia falsa de clareza a questões cuja complexidade é, muitas vezes, avessa a respostas sim ou não. “'Brexit’ means ‘Brexit'”, dizia May, quando, na verdade, “Brexit” podia querer dizer uma miríade de opções diferentes. O acordo do “Brexit”, seja ele qual for, é fruto desta lógica plebiscitária. Não obstante todas as opções faseadas que possa vir a prever, a verdade é que exclui a possibilidade de um autêntico compromisso. Vai construir um muro onde antes existia um caminho aberto. A clarificação que o binarismo “sim/não” traz pode confortar algumas almas. Mas vai reforçar preconceitos dos dois lados do muro. Vai dificultar a comunicação sobre o que nos define, o que nos une uns aos outros e o que nos distingue uns dos outros.
Só por isso, e não é pouco, o acordo do “Brexit” é o derradeiro capítulo de uma história que começou mal, entretanto ganhou vida própria, e que vai acabar por nos deixar a todos com menos opções, mais complicações para resolver e menos esperança em soluções razoáveis.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico