Jesus está à sua espera na secção de congelados

Estou plenamente convencido de que os descontos são provas de amor. O valor de tudo é algo que nasce do corpo, das emoções que nos causam no corpo. E quando vemos tantas empresas a quererem baixar preços, por um dia, por uma semana, só para nós, isso só pode ser amor.

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LUSA/Guillaume Horcajuelo

A minha maior infelicidade dos últimos tempos foi não ter comprado nada na Black Friday. Bem que me esgueirei para fora de casa, tomando todas as devidas precauções, como agora se diz, e rondei centros comerciais, grandes superfícies, cadeias de marca e franchisings de lojas de bairro. Medi as bichas distanciadas, espreitei os descontos imperdíveis e voltei para casa de mãos a abanar. Para me ir dedicar a pesquisar sites de comércio electrónico e inspeccionar sites de comparação de preços.

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A minha maior infelicidade dos últimos tempos foi não ter comprado nada na Black Friday. Bem que me esgueirei para fora de casa, tomando todas as devidas precauções, como agora se diz, e rondei centros comerciais, grandes superfícies, cadeias de marca e franchisings de lojas de bairro. Medi as bichas distanciadas, espreitei os descontos imperdíveis e voltei para casa de mãos a abanar. Para me ir dedicar a pesquisar sites de comércio electrónico e inspeccionar sites de comparação de preços.

E ainda assim: nada.

Sinto agora a angústia de um amor não correspondido, de um potencial negócio da minha vida que consistiria num desconto de quase 15% num artigo que iria tornar a minha vida muito mais feliz. Não sei ainda bem qual.

Estou plenamente convencido de que os descontos são provas de amor. O valor de tudo é algo que nasce do corpo, das emoções que nos causam no corpo. E quando vemos tantas empresas a quererem baixar preços, por um dia, por uma semana, só para nós, isso só pode ser amor, como o amor de uma mãe cansada que ainda brinca com o filho, apesar da vontade de se deitar no sofá.

Afinal, podendo escolher entre os seus produtores, os seus trabalhadores ou os seus clientes, fomos nós, os últimos, os eleitos desta delicada equação. E quem não se entregaria logo nos braços de alguém que fazia o esforço heróico para nos satisfazer, para nos dar mais uma alegria, para nos baixar os preços – mesmo que só durante um fim-de-semana? Se Jesus Cristo anunciasse que ia morrer por nós apenas durante a época de saldos, e depois voltaria à sua carpintaria, não iríamos todos procurar um lugarzinho na última ceia?

Uma promoção é tão memorável como um beijo, tão exaltante como uma carícia inesperada. Mas é preciso lutar por ela, fazer parte dela. Daí o frémito e a ansiedade que aglomera tantos em filas diante da Worten, da Rádio Popular, da Primark, à porta do Colombo ou do NorteShopping. Nem uma epidemia pode ser mais importante que 20% de desconto.

Todavia, admito que há uns anos estes saldos talvez me entusiasmassem mais, quando não recebia descontos todas as semanas nas minhas caixas de correio. O amor, quando demasiado frequente, assemelha-se a rotina, e os saldos correm o risco de nos atirarem para o Tinder dos preços, onde a próxima rebaixa pode ser sempre muito melhor.

E a prova do amor dos saldos vê-se até na alegria dos mais humildes. Ainda na semana passada, antes das 20h, claro, avistei dois ou três homens hirsutos, de roupa coçada, máscara cuidadosamente posta, a entrarem no meu supermercado. Como quem corre para os braços da amante, foram directos à secção de bebidas alcoólicas, onde se dedicaram a inspeccionar e discutir os descontos em vinho de pacote e nas litrosas. Não os segui com o olhar, mas, quando os vi voltarem de lá, de braços e cestos cheios, assobiavam de alegria como quem sabe que só os saldos salvam.