O Coração ainda bate. O deslace
Não, as palavras nunca se vão perder. Nenhuma foi dita em vão quando o amor nos empurrou para elas. É irrelevante se nos responderam ou não.
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O rapaz que agora é homem foi um dia despedir-se da mãe e levou um disco que ouviram juntos. Ela deitada já sem forças, ele reunindo as poucas que tinha para ser forte nesse momento. Mais tarde confessou-me que nunca tinha dito as vezes suficientes o quanto gostava dela e eu aprendi com isso. Nunca deixar nada por dizer. Sobretudo no amor: há uma ridícula ideia de que perdemos algo se dermos ao outro e nada recebermos em troca. Não há vales para gastar no amor que fica empatado. Temos de gastar as palavras, o amor, e tempo com eles.
As palavras não se perdem: flutuam, tornam-se vibrantes sem esperar retorno. Que não se fique acanhado sobre o que se dá: muito pior o que não se deu. O que não cedeu.
Vamos ao início desta história: era uma rapariga muito bonita, delicada, um sorriso que lhe iluminava a cara sem esforço. Um dia apaixonou-se pelo rapaz grande, de voz grave. Ambos se apaixonaram num país que não era o deles. E um dia, voltaram à força tendo perdido tudo o que os ligava, mas não se perderam. Pelo contrário. Às vezes é mais fácil juntar o que não se tem e começar de novo. Foi o que eles fizeram. Casaram. Tiveram um rapaz.
A vida seguiu com os obstáculos que se levantam e que às vezes nós próprios criamos como se precisássemos do raio dos obstáculos para nos sentirmos vivos. Validamo-nos pela dor e pela dificuldade. Será?
Um dia, aquele par bonito deslaçou-se como a massa que não batemos bem. Há sempre um motivo para o deslace e o desenlace. Ela, sobretudo ela, ficou muito triste. Tinha o filho que lhe provava que nada do que fora vivido era em vão, mas faltava-lhe o ânimo que parece vir, vem muitas vezes, do coração. Houve dias em que o filho, pequenino ainda, via a mãe presa à cama sabendo por que razão estava triste. Um dia, esse miúdo agarrou na agenda da mãe e, sem ela ver, organizou-lhe uma festa surpresa, ligando aos amigos, discando com os seus deditos que facilmente se enfiavam na circunferência do telefone e pedindo-lhe que viessem. E eles vieram. Trouxeram a alegria que se empresta por momentos a quem dela precisa. A mãe percebeu como o rapaz era o seu maior tesouro. Assim à distância, mesmo não os vendo, diria que foram felizes dentro da infelicidade que a vida gera sem complacência. A vida teima em ser pontiaguda quando a queríamos dócil. Dificilmente será.
Foi mais tarde, com ele ainda muito novo, que a mãe ficou doente. Desta vez os dedos dele já não cabiam no disco giratório do telefone mas, na verdade, até já havia telemóveis. E ele cuidou dela.
É muito dura a vida quando um filho muito novo se torna pai da sua mãe. E a vê débil já sem a possibilidade de o sorriso lhe iluminar o rosto. E lhe leva um disco para ouvirem juntos na despedida. Era um disco do Jeff Buckley.
É possível que ele não tenha chorado. Disse as palavras que conseguiu dizer, difíceis de arrancar de um peito que se formou quase sozinho. Mas nesse peito, o coração também bate. Bate forte, vibrante como as palavras que não se perderam.
Não, as palavras nunca se vão perder. Nenhuma foi dita em vão quando o amor nos empurrou para elas. É irrelevante se nos responderam ou não.
Era um disco do Jeff Buckley. Ouço-o agora.