O cidadão Marcelo e o atentado de Camarate
Em tudo o que for justiça, um dos pilares do Estado de que Marcelo é o chefe, o que interessa ao país é a opinião do Presidente da República.
Um dos encantos de Marcelo Rebelo de Sousa é ele continuar a ser em Belém o “professor Marcelo”, o cidadão. Marcelo não mudou com a ascensão ao mais alto cargo do país – ele é assim, sempre foi assim, é dotado do maior índice de empatia e de disponibilidade possível num ser humano, tudo amalgamado numa personalidade hiperactiva e desconcertante.
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Um dos encantos de Marcelo Rebelo de Sousa é ele continuar a ser em Belém o “professor Marcelo”, o cidadão. Marcelo não mudou com a ascensão ao mais alto cargo do país – ele é assim, sempre foi assim, é dotado do maior índice de empatia e de disponibilidade possível num ser humano, tudo amalgamado numa personalidade hiperactiva e desconcertante.
De todos os presidentes, incluindo Mário Soares, é aquele que deixou que a parte do “cidadão” mais formatasse o mandato do Presidente. Muitos gostam, alguns detestam: mas a euforia, uma disponibilidade rara que às vezes toca a omnipresença, a incapacidade de dar ao cargo uma determinada gravitas, faz e sempre fez parte da sua personalidade pública. Marcelo, seguramente o português que mais cálculos políticos faz por dia, decidiu que na presidência não seria diferente do que era na vida comum.
Isto tem corrido muito bem, excepto quando corre mal. E na sexta-feira, dia do 40.º aniversário da morte de Sá Carneiro, correu mesmo muito mal quando Marcelo decidiu comunicar ao país a sua “convicção pessoal” enquanto “cidadão” de que o fundador do PSD e outros ocupantes do fatídico Cessna tinham sido vítimas de um atentado.
“Formei uma convicção como cidadão que mantenho de que não se tratou de um acidente”, disse Marcelo na SIC Notícias. É verdade que a tese do atentado chegou a ser aprovada pela Assembleia da República, e as conclusões enviadas para o Ministério Público. Mas o Estado português não provou a tese do atentado – e até foi absolvido em 2011 pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos da acusação de “negligência”.
Ora, Marcelo é chefe de Estado, do tal Estado que foi absolvido de ter tratado negligentemente o processo Camarate. Há zonas de sombra no processo. Mas é possível ao chefe de Estado manter enquanto cidadão a “convicção” de que o primeiro-ministro, o ministro da Defesa e acompanhantes morreram num atentado que o Estado português, na sua incompetência, nunca desvendou?
Por causa de um secretário de Estado (Ricardo Sá Fernandes) ter abraçado a tese do atentado em 2000, o então ministro da Justiça, António Costa, exigiu a sua demissão. As convicções do cidadão Marcelo põem naturalmente em causa a confiança no sistema judicial (e, segundo as convicções de muitos cidadãos, o sistema judicial merece muitas vezes essa desconfiança), mas o que pensa o Presidente? Em tudo o que for justiça, um dos pilares do Estado de que Marcelo é o chefe, o que interessa ao país é a opinião do Presidente da República.