Atentado à criatividade
A ânsia de inovar tem vindo a deformar e a privar da sua essência o estudo e as metodologias de avaliação das línguas estrangeiras, desvirtuando-os. Se, no espaço das suas aulas, cada professor é livre de orientar o seu trabalho, a verdade é que alguns docentes poderão escolher as estratégias limitativas advogadas pelo Ministério da Educação.
Foi há dias transmitida na RTP uma reportagem de Conceição Lino sobre a educação na actualidade em Portugal. Foram entrevistados vários estudantes, entre os 16 e os 22 anos, que davam a sua opinião sobre e nos contavam do seu nível de insatisfação com a sua experiência académica.
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Foi há dias transmitida na RTP uma reportagem de Conceição Lino sobre a educação na actualidade em Portugal. Foram entrevistados vários estudantes, entre os 16 e os 22 anos, que davam a sua opinião sobre e nos contavam do seu nível de insatisfação com a sua experiência académica.
Como professora, interessei-me pelo programa, que segui com atenção. Sempre achei fulcral ouvir os alunos, as suas opiniões, preocupações, perplexidades para dirigir a minha metodologia e procedimento didáctico às suas dificuldades, necessidades, vocações.
As respostas dos estudantes às várias perguntas que ouvi surpreenderam-me pelo espírito crítico, capacidade de análise e maturidade. Admirei-me ainda com o facto de, apesar da nossa diferença de idades, estarem em sintonia com a minha própria visão do ensino, o espírito de transmissão de conhecimentos, bem como os métodos de avaliação. Estou a referir-me essencialmente a disciplinas de humanidades, nomeadamente as línguas, a minha área profissional.
Como professora de Inglês e Alemão no ensino secundário, tenho pugnado contra a actual tendência para relegar as humanidades para segundo plano, considerando-as campos de conhecimento menores, sendo que aos alunos que as escolhem raramente é reconhecida uma vocação, são antes considerados “fugitivos da Matemática”. Este espírito de minimização das humanidades e exaltação das disciplinas científico-naturais conduz a uma deturpação dos métodos de avaliação e de transmissão de conhecimentos, negligenciando totalmente características inerentes às ciências humanas – criatividade, imaginação, individualidade – numa tentativa insólita de lhes conferir um carácter essencialmente pragmático.
Os alunos entrevistados sentiam-se asfixiados por uma metodologia de ensino que os privava da sua liberdade de criar, de imaginar, de usar a sua sensibilidade e individualidade. Lamentavam ainda que estas capacidades não fossem desenvolvidas e incentivadas.
As críticas e desabafos que ouvi fizeram-me imediatamente lembrar o professor Thomas Gradgrind – ”A man of realities. A man of facts and calculations” –, personagem criada por Charles Dickens em Hard Times, ilustrativa do pragmatismo da época. Thomas Gradgrind silenciava qualquer manifestação de imaginação, sensibilidade e individualidade dos seus alunos.
Foram muitos os estudantes entrevistados que apontaram estas enormes lacunas do nosso actual sistema de ensino.
Como já referi, vou centrar este meu comentário especificamente nas línguas estrangeiras, já que constituem a área de que tenho longa experiência profissional.
Na realidade, a ânsia de inovar tem vindo a deformar e a privar da sua essência o estudo e as metodologias de avaliação das línguas estrangeiras, desvirtuando-os. Se, no espaço das suas aulas, cada professor é livre de orientar o seu trabalho do modo que considerar mais benéfico para os alunos, a verdade é que alguns docentes poderão escolher as estratégias limitativas advogadas pelo Ministério da Educação e bem patentes nos instrumentos de avaliação com a chancela da tutela.
Há que inovar, modificar, mesmo que para tal se limite a aprendizagem, neste caso de uma língua viva e se ignorem culturas inerentes a essa mesma língua!
No ano lectivo passado, o ministério resolveu eliminar as provas escritas de exame de línguas estrangeiras de 11.º ano a nível de escola e instituir uma prova única emanada da tutela. Anteriormente, as duas coexistiam, sendo que as primeiras tinham em conta a metodologia seguida pelos respectivos docentes ao longo do ano.
O que mais me surpreendeu foi verificar que a prova única de Inglês do 11.º ano consistia, na sua quase totalidade, em exercícios de escolha múltipla, sendo que o aluno só podia escrever frases suas e exprimir-se livremente no último grupo: a produção escrita (composição). Este grupo era constituído por duas questões: uma composição, que valia somente 4 valores em 20, e um simulacro de produção escrita que, como tal, estava cotado apenas para 0,8. Um examinando que não tocasse sequer na composição e conseguisse responder correctamente a quase todas as outras perguntas (os critérios de correcção assim o permitiam) poderia obter a classificação de 16 valores sem construir uma única frase!
Os alunos que fazem o exame final são aqueles que não obtiveram aproveitamento à disciplina ou os que querem tentar uma melhoria de nota. Este tipo de prova não permite uma avaliação fidedigna de uns ou de outros, já que testa essencialmente a compreensão, não evidenciando as suas verdadeiras capacidades de utilização da língua. Além do mais, também não os beneficia. Todos sabemos como pode ser traiçoeira a escolha múltipla, muitas vezes elaborada de uma forma tal que só confunde o estudante, não permitindo avaliar os seus reais conhecimentos.
Vi, no dia do exame, num dos noticiários, depoimentos de alunos que estavam decepcionados com esta prova escrita porque só podiam realmente comunicar na composição. Tudo o resto era mera cópia de palavras ou do número da pergunta e da alínea correspondente.
É claro que não era sequer aflorada a análise de uma obra literária de leitura extensiva, parte integrante do programa e extremamente importante para dar a conhecer escritores de expressão inglesa. Obviamente, tal análise tinha estado sempre presente nos exames a nível de escola.
Foram também completamente banidas as perguntas directas de interpretação de um texto, em que o aluno pode fazer a sua leitura e transmitir as ideias que tal leitura lhe sugere, dando por vezes respostas surpreendentes e criativas.
É conveniente recordar que os estudantes do 11.º ano têm entre 16 e 17 anos e que a maioria aprende Inglês desde o 1.º ano de escolaridade, pois, como todos sabemos, trata-se de uma língua essencial para qualquer campo de estudos e área profissional que venham a escolher. Não irão com certeza, mais tarde, escrever as suas apresentações com recurso à escolha múltipla. Esta estratégia para avaliação de conhecimentos tem sido sobrevalorizada em todos os níveis de ensino.
Quanto às provas orais, a metodologia escolhida pela tutela constitui uma total humilhação para qualquer professor que preze a sua profissão. Com a justificação de que há necessidade de uniformizar critérios, o Ministério da Educação envia para as escolas vários interrogatórios detalhados sobre todos os temas do programa, os chamados guiões, a serem entregues aos professores examinadores. Estes interrogatórios devem ser seguidos rigorosamente, o que só pode implicar a leitura, desde a apresentação pessoal dos professores, que cada um deles contém no início da prova (chega a ser ridículo!), até ao final. Há até uma chamada de atenção para o facto de o docente não dever afastar-se minimamente do tema, caso a resposta de um aluno a tal dê azo. Deve ignorar qualquer reacção pessoal e avançar cegamente para a pergunta seguinte.
Tais provas orais não necessitam de ser conduzidas por professores de Inglês, já que as perguntas podem ser lidas por qualquer pessoa que consiga ler a língua de forma inteligível.
Este tipo de provas está desprovido de naturalidade e espontaneidade e desrespeita a dignidade profissional do docente. Gera-se, além do mais, uma situação de rigidez que não beneficia o aluno. Normalmente, o professor reage à personalidade do aluno que está a interrogar. Surgem perguntas, comentários, até mudanças ou derivações do tema. Porque não? Estamos perante seres humanos vivendo um momento de grande vulnerabilidade, não perfis previstos pelo ministério, figuras-tipo.
Se a intenção do ministério era uniformizar ao máximo os procedimentos, enviavam um guião modelo para que os docentes, caso não estivessem já informados, pensassem os seus interrogatórios e organizassem o seu material visual dentro do espírito transmitido.
Com todo este quadro, penso que resulta claro que está a acontecer, tanto para os estudantes como para os respectivos professores, um atentado à criatividade, à espontaneidade, à individualidade e uma imposição de um espírito totalmente pragmático.
Os alunos entrevistados no programa de Conceição Lino sentem essa limitação, apontam-na, criticam-na sem receios. Congratulo-me com a sua lucidez, capacidade de análise e espírito crítico. Será que alguém lhes dará a atenção devida?