E depois da covid-19? As dores e os projectos que continuam com os sobreviventes
Há vários projectos em curso dedicados a acompanhar os doentes que recuperaram da covid-19 em Portugal avaliando as marcas que esta infecção deixa nos seus corpos e nas suas vidas.
O rasto da doença prolonga-se no tempo. Falta o fôlego, sobra o cansaço, falha a concentração e memória, sente-se os músculos fracos, perde-se o equilíbrio, as dores de cabeça são mais intensas e mais frequentes, a respiração custa e podem surgir sinais de danos causados nos pulmões, no coração, nos rins. Os efeitos a longo prazo – ainda será cedo para falar em sequelas – não são os mesmos em todos os doentes que recuperaram da covid-19 e não se sabe quando (nem se algum dia) as marcas vão desaparecer por completo. Mas já se sabe que o rasto da doença se prolonga no tempo.
Muitas vezes, quando ouvia os doentes queixarem-se do cansaço a médica Margarida Tavares respondia que, se calhar, isso era “uma impressão”. Mas chegou o dia em que foi infectada também. “Notei quando fui trabalhar e tive de trocar a farda num local que fica três pisos abaixo do meu serviço e tive de parar duas vezes no caminho para depois subir os três andares”, conta a infecciologista. Soube que estava infectada com o SARS-CoV-2 no início de Outubro e o cansaço melhorou mas ainda não passou. Já regressou ao trabalho e – à semelhança do que fazem outras equipas noutros hospitais do país, a médica do Hospital de S. João do Porto está a acompanhar doentes recuperados da covid-19 e a fazer o registo dos efeitos a curto, médio e longo prazo sentidos pelos sobreviventes, como ela.
A ministra da Saúde e a directora-geral da Saúde já mencionaram várias vezes que “os hospitais portugueses estão a acompanhar os doentes e a analisar o impacto da doença”. Assim, à semelhança do que se faz em muitos outros países, são avaliados os efeitos a curto, médio e a tão longo prazo quanto possível. Em declarações aos jornalistas, Graça Freitas explicou que “o acompanhamento dos doentes implica bastante tempo para perceber se [as sequelas] são permanentes ou se vão desaparecendo ao longo do tempo”, mas garantiu que há “estudos que estão a ser feitos em Portugal, pelos nossos hospitais, pelos nossos clínicos” e que Portugal irá contribuir “para o que é a ciência nesta matéria”.
Todos os dias ouvimos os números dos novos casos, mortes e doentes internados ou entregues a cuidados intensivos. Além de um eventual alívio que se possa sentir nas enfermarias dos hospitais, a única boa notícia no boletim que nos acompanha desde Março resume-se ao registo dos recuperados. São os doentes que sobreviveram ao vírus e, como era de esperar, o pelotão de sobreviventes cresce de dia para dia. Há, actualmente, cerca de 200 mil pessoas em Portugal que tiveram covid-19 e recuperaram. No mundo serão cerca de 40 milhões. Porém, muitos não escaparam ilesos.
Muitas equipas de clínicos e investigadores em Portugal estão a reunir dados sobre as marcas que a infecção deixou no corpo e no resto da vida dos “recuperados”. Desde os danos que se previa encontrar em órgãos como os pulmões e coração onde o vírus deixa um rasto claro até à unânime queixa sobre o cansaço que afectou quase todos, avalia-se também o tempo de espera pelo regresso do paladar e olfacto e ainda o possível impacto a nível neurológico e cognitivo, a recuperação motora, entre outras mazelas. Inventaram-se novas expressões como o “nevoeiro cerebral” da covid, que instala alguma confusão e lapsos de memória em alguns dos doentes e alerta-se também para a estranha evidência que tem revelado que os doentes que sofreram formas ligeiras da doença apresentam um maior número de queixas e por mais tempo, tornando o período pós-covid mais insuportável do que o momento da doença.
Segunda vaga atrasa resultados
Apesar dos vários projectos em curso que mostram que alguns dos sobreviventes em Portugal continuaram a ser vigiados após a doença, ainda não há resultados sólidos com percentagens rigorosas para reportar. O violento embate da segunda vaga da pandemia atrasou a leitura e interpretação dos dados recolhidos pelos investigadores que estão simultaneamente a tratar os doentes e, por isso, os resultados sobre os recuperados só deverão começar a ser divulgados e publicados no início do próximo ano.
“Temos já alguns dados que queríamos já ter tratados e divulgar, temos tantas coisas penduradas e até já concluídas, mas depois não temos tempo para olhar para os resultados, quantificar, estudar e tirar conclusões”, lamenta ao PÚBLICO Margarida Tavares, sublinhando que o que tem por agora são sobretudo “impressões empíricas”.
Na consulta, a infecciologista já viu mais de 100 doentes. No estudo mais específico sobre os efeitos a longo prazo da covid-19 estarão incluídas já cerca de 400 pessoas diagnosticadas no Hospital de S. João desde 2 de Março, que são contactadas telefonicamente para um inquérito “estruturado” sobre as características da doença, escalas de dor, sono, as co-morbilidades, hábitos e medicação até outro tipo de questões sociais relacionadas com habitação ou o emprego.
“Isto é razoavelmente fácil de enquadrar: há efeitos neurológicos, neuro-cognitivos, pessoas que diziam que tinham dificuldade em concentrar-se, em voltar a trabalhar, queixas de memória, outra queixa muito frequente eram as cefaleias, também um cansaço geral, físico e psicológico”, resume a médica, que sublinha que o serviço de psicologia do Hospital de S. João tem acompanhado desde o início os doentes recuperados.
A doença respiratória também pode deixar marcas cardiopulmonares, sublinha. Uma pneumonia, independentemente da sua origem, deixa sempre algumas lesões. “Mesmo nas pessoas que tiveram doença muito ligeira, há um sintoma muito recorrente e muito longo que é uma sensação de dispneia, uma sensação de falta de ar, parece que o ar não chega”, assinala ainda Margarida Tavares. Dizer uma simples frase pode cansar.
Depois, algumas pessoas relatam ainda efeitos cardíacos, arritmias ou taquicardias. “Já sabemos que pode haver dano directo do coração, que pode condicionar quer as arritmias quer doença do músculo cardíaco, a miocardites, ou até mesmo insuficiência cardíaca”, afirma a médica. Há, por fim, queixas difíceis de catalogar: das mais variadas dores, osteoarticulares e musculares, conclui a infecciologista.
Queixas e tempestades
Há projectos que estão a recrutar recuperados da covid-19 e fazem rastreios à procura de sinais de estragos em diferentes órgãos independentemente de os doentes se queixarem de alguma coisa, mas há outros trabalhos que vão acompanhando um grupo de doentes e só procuram as explicações mediante as queixas. “No meu caso faço, exames aos doentes perante queixas. Mas, por exemplo, os colegas dos intensivos do meu serviço estão a reavaliar de forma sistematizada os doentes que estiveram em cuidados intensivos e aí fazem uma TAC torácica e provas de função respiratória. Há também um estudo grande que está a começar agora, no qual também estou envolvida com os colegas do serviço de pneumologia, da urgência, dos cuidados intensivos e da medicina interna, em que também vamos a avaliar de forma organizada uma amostra grande de doentes com vários testes que pretendem sobretudo avaliar a função e a estrutura cardíaca e respiratória”, enumera Margarida Tavares.
As marcas deixadas pela infecção, dizem os especialistas, dependem de vários factores. Desde a exuberância da resposta inflamatória do sistema imunitário à infecção (a chamada tempestade de citoquinas) às doenças pré-existentes (as co-morbilidades), passando ainda pela gravidade dos sintomas da infecção pelo SARS-CoV-2, que nalguns casos é tratada em casa, noutros nas enfermarias dos hospitais e, nos casos mais graves, nas unidades de cuidados intensivos.
Na verdade, os danos da infecção podem muitas vezes confundir-se com os efeitos de uma série de cuidados especiais que foram necessários para travar a doença, desde o recurso a ventiladores até à inevitável carga de forte medicação que tem sempre efeitos colaterais. Por isso, nos casos mais graves, o desafio é também distinguir o que é uma consequência da infecção causada pelo vírus e o que é o resultado dos meios usados para travar a doença ou o impacto dos sintomas instalados, como dificuldades respiratórias. Mas os efeitos de longo prazo também estão presentes de uma forma muito marcada nas pessoas que tiveram uma forma ligeira da doença e que são relativamente jovens. Uma das explicações possíveis para os sintomas pós-covid nestes doentes está na resposta do sistema imunitário que continua activa após a fase aguda, criando uma espécie de doença crónica. Muito especialistas descrevem este efeito comparando o nosso sistema imunitário a um pelotão de polícias que passou a ser incapaz de reconhecer os maus e os bons da fita no nosso organismo e que, por isso, ataca indiscriminadamente para todo o lado.
De Norte a Sul, do coração ao cérebro
Em Portugal, os estudos com os recuperados decorrem em várias frentes: em hospitais, institutos e instituições académicas. Há, por exemplo, um grupo de estudantes de medicina na Universidade do Algarve, coordenados pela professora Dina Gaspar, que escolheu acompanhar famílias onde se registaram casos de covid-19, no âmbito do projecto da unidade curricular de medicina interna e que geralmente é dedicado a doentes crónicos. O seguimento clínico destas famílias deverá durar um ano, mas os primeiros resultados podem já começar a surgir no início do próximo ano, adiantou ao PÚBLICO Dina Gaspar.
No Norte, Margarida Correia Neves, da Faculdade de Medicina da Universidade do Minho, confirma ao PÚBLICO que estão a ser acompanhados os estudos com estes doentes que decorrem nos hospitais de Guimarães e de Braga.
No caso de Guimarães, por exemplo, mais de 100 doentes internados começaram a ser chamados desde o início de Julho e pretendia-se avaliar os doentes passado três meses, seis meses e um ano, focando-se sobretudo nas marcas de fibrose respiratória e em lesões pulmonares que serão permanentes. Depois, há também uma estratégia de rastreio aos doentes, pesquisando-se as marcas deixadas pela doença a nível do sistema nervoso central e coração. “Mas neste momento, estes colegas não estão a conseguir fazer mais nada que não seja tratar dos doentes com covid-19”, lamenta Margarida Correia Neves, confirmando a sobrecarga dos serviços hospitalares nesta segunda vaga. No caso de Braga, o plano de recrutar cerca de duas centenas de doentes começou a avançar, mas ficou tudo parado porque “não se consegue dar resposta a tudo”.
Há ainda projectos com alvos bem mais específicos: por exemplo, Ana Mesquita, investigadora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, está a coordenar a equipa que integra um projecto internacional em curso em 13 países para perceber como é que o novo coronavírus alterou as experiências perinatais, nomeadamente o impacto na saúde mental das grávidas e no desenvolvimento das crianças.
Em dois hospitais portugueses – o Hospital de S. João e no Hospital Garcia de Orta, em Almada – há equipas que estudam especificamente a forma como o coração é afectado pelo vírus SARS-CoV-2. Além da dura rotina das unidades de cuidados intensivos, os médicos fazem autópsias, ecocardiografias e procuram biomarcadores para perceber as várias lesões que chegam a afectar 50% desses doentes. Roberto Roncon, coordenador de uma unidade de cuidados intensivos do Hospital de São João, orienta o estudo que recebeu um financiamento de 30 mil euros da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). No Hospital Garcia de Orta, uma equipa coordenada pelo médico Filipe Gonzalez, do Serviço de Medicina Intensiva, está a estudar biomarcadores específicos (como a troponima) que indicam uma existência de sofrimento cardíaco.
Em Lisboa, no Hospital da Santa Maria, a médica Sandra Braz está a liderar um rigoroso plano de acompanhamento destes doentes que deverá durar, pelo menos, dois anos e já conseguiu mobilizar um grupo de apoio a estes doentes reconhecido a nível nacional. A médica já falou publicamente sobre este projecto várias vezes e tem sublinhado que parece começar a ser cada vez mais evidente que a recuperação funcional e motora dos doentes (mesmo os que tiveram internamentos de longa duração) é positiva, sobretudo quando existe com um apoio consistente da fisiatria. As marcas cardíacas, renais e neurológicas serão de recuperação mais lenta, mas destaca-se também uma evolução positiva, com cuidados e medicação prolongados no tempo. Por fim, será também claro que a covid-19 causa outro tipo de danos, os emocionais – angústia, medo, irritabilidade e mesmo quadros depressivos –, que nalguns casos teimam em persistir.
Na região do Porto, além dos vários estudos a decorrer no Hospital de S. João, há também um trabalho no Centro Hospitalar do Porto que se dedica à identificação dos quadros neurológicos associados à infecção por SARS-COV-2, mas ainda não há resultados finais prontos para divulgar. Numa entrevista à SIC em Outubro, Sara Cavaco, directora de neuropsicologia do Centro Hospitalar do Porto, confirmou já que, entre os cerca de 500 doentes com menos de 65 anos que recuperaram da doença entre Março e Maio deste ano e que estão a ser avaliados, cerca de 20% tem “queixas cognitivas”, ou seja, um aumento do volume e intensidade de falhas de memória, dificuldade de concentração e coordenação de tarefas. A especialista referiu ainda que em alguns doentes as queixas persistem e têm já, pelo menos, seis meses de evolução, mas ainda é cedo para concluir que serão sequelas permanentes da infecção.
Vítor Tedim Cruz, médico no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, e investigador no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, tem um projecto financiado pela Fundação Gulbenkian e pela FCT que visa também avaliar as “trajectórias cognitivas” dos doentes assistidos em dois hospitais da região, a unidade onde trabalha e o Hospital de Santa Maria da Feira. O plano assenta na adaptação de uma estratégia desenhada para acompanhar doentes oncológicos através de um teste chamado “Brain On Track”, mas agora virado para doentes que tiveram covid-19. O projecto começou logo em Abril e, segundo Vítor Tedim Cruz explica ao PÚBLICO, inclui 1000 doentes da primeira vaga dos dois concelhos (Matosinhos e Santa Maria da Feira), dos quais 400 aceitaram participar, sendo que 70% já fizeram duas avaliações com o teste.
O projecto tem a duração de um ano, mas o médico confirma que os doentes “verbalizam frequentemente queixas de fadiga e depressão”. Para uma análise mais rigorosa dos resultados, este estudo vai incluir uma amostra de mil pessoas com características idênticas em termos de idade, género, área de residência e escolaridade, que não foram infectadas por covid-19. Por outro lado, o projecto vai ainda explorar a hipótese de esta infecção poder ter um peso no aumento do risco de desenvolver doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson, num plano que parte do pressuposto da relação que se estabeleceu no passado entre a gripe espanhola e um aumento de casos de encefalite letárgica. “Precisamos de respostas mais claras, sabe-se que no início há sintomas neurológicos, como a perda de olfacto e paladar e as cefaleias. Em autópsias, este vírus foi encontrado no tecido cerebral, como aliás já outros vírus mostraram ser capazes de fazer. Temos de saber o que isso significa neste caso, se é algo mau ou inofensivo. Seja como for, justifica-se vigiar isso”, diz Vítor Tedim Cruz.
O conhecimento que existe actualmente no mundo sobre a covid-19 e os seus efeitos a longo prazo baseia-se em frases que começam frequentemente com a expressão “ainda não sabemos se”. “Ainda não sei se estes efeitos vão ser crónicos. Ninguém no mundo ainda tem tempo suficiente para dizer o que significam estes efeitos”, constata Margarida Tavares. Serão, para já, efeitos a longo prazo de uma doença nova que nalguns casos foi mais grave do que noutros e que em todos deixou uma marca mais ou menos visível. Muitos estudos internacionais chamam a estas pessoas “doentes covid-19 de longo curso” (long-haulers), retratando a dura viagem na companhia desta infecção que, apesar de todas as perguntas sem resposta, já se sabe que se arrasta no tempo.