Isabel e João acreditaram no burel e na magia de um tecido de monges e pastores
No final da década passada, Isabel Costa e João Tomás viram uma serra da Estrela mergulhada em desemprego e problemas sociais. Quiseram ajudá-la a renascer. E encontraram no burel, um tecido pobre feito com a lã das ovelhas bordaleiras, um caminho de futuro.
“Sou uma sonhadora operacional”, diz Isabel. As histórias, quem as sabe contar bem é João. Talvez. Podíamos, sem dúvida, passar uma noite a ouvir João falar do tempo dos sanatórios onde os tuberculosos se iam curar, do entusiasmo da expedição científica dos finais do século XIX ou dos desenhos de Maria Keil para o local onde nos encontramos, mas a história do burel, essa, faz sentido contada pelos dois.
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“Sou uma sonhadora operacional”, diz Isabel. As histórias, quem as sabe contar bem é João. Talvez. Podíamos, sem dúvida, passar uma noite a ouvir João falar do tempo dos sanatórios onde os tuberculosos se iam curar, do entusiasmo da expedição científica dos finais do século XIX ou dos desenhos de Maria Keil para o local onde nos encontramos, mas a história do burel, essa, faz sentido contada pelos dois.
Há, nesta noite em que conversamos a uma mesa de jantar da Casa de São Lourenço, uma terceira personagem, que, silenciosa, oferece-nos apenas – e não é pouco – a sua presença serena: a serra da Estrela. Foi ela que acolheu os tuberculosos e os cientistas, e foi ela que inspirou Maria Keil a desenhar para a então Pousada de Portugal, criada pelo Secretariado de Propaganda Nacional, de António Ferro, e inaugurada em Março de 1948. E foi ela que, um dia, fez as vidas de Isabel e João mudarem de rumo.
Isabel Costa, uma transmontana-minhota, e João Tomás, um lisboeta, apaixonaram-se pela serra – primeiro pela paisagem e pela história deste lugar que é muito mais do que a “montanha mais alta de Portugal” ou um destino de neve (o que, aliás, é cada vez menos). E depois pela ideia de que podiam, com o seu trabalho, ajudar a fazer renascer a esperança e a promover “uma cultura que se julgava esquecida pelo tempo”.
Deixaram os empregos, na banca e numa grande empresa, e adquiriram inicialmente o antigo sanatório das Penhas Douradas, que transformaram na Casa das Penhas Douradas. A seguir, veio a antiga Pousada de São Lourenço, hoje Casa de São Lourenço, que adaptaram às necessidades modernas, garantindo que mantinha a memória, nomeadamente através da homenagem feita ao trabalho de Maria Keil.
Foi quando procuravam elementos locais para a decoração do primeiro hotel que encontraram o burel, esse tecido rude e resistente, feito com a lã das ovelhas da serra, das raças bordaleira e mondegueira. “São duas lãs muito pobres, que antigamente eram queimadas ou enterradas”, conta Isabel. “Este método de produção chegou a Portugal com os monges dominicanos no século XI. O nome burel significa em latim tecido áspero e grosso.”
Mas, passado há muito o período áureo da produção de lanifícios na serra da Estrela, as fábricas de Manteigas estavam a fechar ou muito perto disso. “Em 2008, 2009, a vila de Manteigas estava com um problema enorme de desemprego. Uma das fábricas, que chegou a ter 700 trabalhadores, tinha fechado em 2005.” Isabel e João tentaram identificar os produtos endógenos que poderiam ajudar a dar a volta à situação, criando pequenas empresas, mas rapidamente perceberam que era preciso escolher as apostas.
E o burel pareceu-lhes ter futuro, desde que tratado de uma forma diferente. A ideia era aproveitar as características desta lã e deste processo para o transformar em material para ser usado em decoração e arquitectura. Foi o que provaram ser possível, logo no início, na forma como decoraram a Casa das Penhas Douradas. Alugaram um espaço na Lanifícios Império, que ainda não tinha fechado, e fizeram uma viagem ao Japão para tentar perceber qual a aceitação que o burel teria numa feira internacional de design.
“Percebemos que havia potencial.” Muito exportado durante as guerras mundiais para fazer capas para os soldados, o burel revela-se agora em toda a sua versatilidade na Casa das Penhas Douradas e na Casa de São Lourenço, onde há múltiplos exemplos da sua utilização nas paredes, nas almofadas, e até nos pequenos (e premiados, pelo seu design) bancos em forma de ovelhas, maiores ou mais pequenas.
Apesar deste arranque promissor, a Lanifícios Império estava no limite das suas forças e viu-se forçada a entrar em insolvência. A resposta surgiu-lhes clara: iam pegar na fábrica e mantê-la em actividade, para dar resposta às solicitações que já começavam a aparecer, nomeadamente uma grande encomenda da Microsoft. Ainda não seria desta que as velhinhas máquinas do século XIX iriam ser silenciadas – e que barulheira fazem quando se visita aquela que é hoje a Burel Factory, onde se produz o burel e outros tipos de tecidos para mantas, casacos e artigos vários, que se podem comprar nas lojas de Lisboa, Porto, Manteigas (e online).
Reconhecido como material de construção, o burel ganhou assim uma nova vida. Visitar a Burel Factory – e há visitas guiadas todos os dias – é viajar no tempo para uma época de grandes máquinas industriais, estruturas metálicas que, no meio de um barulho muitas vezes ensurdecedor, trabalham a lã. Uma das máquinas, num trabalho delicado, separa-a em fios coloridos que depois, seguindo complicados desenhos guardados em antigos cadernos quadriculados cheios de sinais misteriosos, vão ser cruzados em tecidos de diferentes padrões.
A lã é retirada às ovelhas e chega aqui em sacos de 200 ou 300 quilos. Para a trabalhar, é preciso primeiro abri-la, separá-la, num processo a que se chama cardar e que é feito na máquina mais antiga da casa, de meados do século XIX. Depois é torcida em fios, mas o verdadeiro burel só nasce depois de ser batida, para prensar as fibras, e mergulhada em água, para encolher.
Era assim que os monges dominicanos faziam, e, mais tarde, os pastores da serra imitaram-nos, criando os tradicionais capotes que os protegem ao mesmo tempo do frio e do calor. “O burel foi importantíssimo durante a guerra, trouxe imensa riqueza à serra, primeiro no preto das capas fúnebres, com a rainha Santa Isabel, e mais tarde no verde, para os soldados que participavam nas guerras”, conta Isabel.
Hoje o burel tem muitas cores e é utilizado de mil e uma formas criativas. “Poder usar estas lãs pobres em materiais onde elas são superpreciosas é uma coisa extraordinária.” Mas, nove anos depois de ter conquistado uma segunda vida, o burel precisa que se continue a acreditar nele. Por isso, Isabel e João sabem que, apesar do impacto da pandemia, é fundamental não parar. “Já passaram nove anos, há tanta coisa para fazer. Há tudo para fazer.”