Uma anestesia do (des)contentamento: reflexões sobre a saúde social
Este tempo presente que vivemos é permissivo para a consciência dos enfartes da alma. Proporciona até a consciência do tédio. Passamos a ser turistas do pensamento em viagens infindáveis sobre possíveis bálsamos que suspendam a dor maior da existência e da fragilidade humana.
Nos tempos actuais, quando o óbvio se encontra com o complexo e o individual assiste a um acréscimo de responsabilidade e continuidade para com o colectivo, não sobra tempo para uma reflexão actualizada sobre a catarse de transformações sociais fracturantes. Ainda que parte dessas fracturas expostas - num corpo social em efervescência perante um léxico de problemas pandémicos e orgânicos - sejam agora manifestas e aguardem uma cura, a sua génese remonta a períodos de anestesia, de dormência social. Estas transformações, agora em ebulição clara e calcificada, terão sido células em constante metástase silenciosa num organismo cumulativo e de excessos: a sociedade.
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Nos tempos actuais, quando o óbvio se encontra com o complexo e o individual assiste a um acréscimo de responsabilidade e continuidade para com o colectivo, não sobra tempo para uma reflexão actualizada sobre a catarse de transformações sociais fracturantes. Ainda que parte dessas fracturas expostas - num corpo social em efervescência perante um léxico de problemas pandémicos e orgânicos - sejam agora manifestas e aguardem uma cura, a sua génese remonta a períodos de anestesia, de dormência social. Estas transformações, agora em ebulição clara e calcificada, terão sido células em constante metástase silenciosa num organismo cumulativo e de excessos: a sociedade.
A saúde social reflecte um conjunto de interacções e comportamentos dos indivíduos em sociedade, que pode variar entre dinâmicas saudáveis ou contextos e tendências que suscitem diagnósticos e cuidados acrescidos. Os conflitos sociais, as tomadas de consciência colectiva perante inimigos invisíveis comuns ou as rupturas nas estruturas e instituições, tal como as conhecemos, são partes integrantes da sintomatologia que perfaz períodos de mudança. Tal como o corpo humano, as sociedades têm no seu ADN a capacidade de recomposição e de regeneração das suas estruturas vitais e circuitos de sobrevivência. E nada disto é novidade: a liquidez dos sistemas; dos modos de vida; do ser e do estar; do fazer e do produzir; do sentir (!), já assume um lugar comum nos debates das últimas décadas.
De acordo com Zygmunt Bauman, esta liquidez presume um absentismo do que é ou pode ser considerado consistente e sólido. Isto é, numa sociedade pós-moderna ou hipermoderna, onde existe uma preponderância do instante, do presente, da aceleração do aqui e do agora, do consumo do prazer ou da indefinição das próprias linhas de referência das relações afectivas, a desaceleração pode até ser preconizada - mas evidencia resistência ao tentar ser socializada. É quase um processo contranatura no sistema social no qual nos desenvolvemos.
Um pedido de desaceleração, de confinamento ou de readaptação de práticas, incentiva ao repensamento da liquidez das coisas comuns. Traz igualmente alguns vislumbres “foucaultianos” da sociedade disciplinar, onde o medo e o julgamento coexistem. Coage também, inevitavelmente, a uma reavaliação dos valores de cada um em sede de sociedade, de actores sociais a agentes sociais de saúde pública, de sanidade pública. De saúde social.
Em 2010, no livro A Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han, fala-nos do “enfarte da alma”. Um enfarte que desagua na produção de um estado de esgotamento e de cansaço generalizado do ser humano, inserido numa sociedade de produção que requer um excesso de positividade. Excesso este que tende a exacerbar a quantidade de informações a processar, os estímulos sensoriais ou os gatilhos impulsivos, gerando assim uma redoma infindável na chamada espuma dos dias; mas onde a ideia de tédio não é suportada. Paralelamente, este tempo presente que vivemos é permissivo para a consciência dos enfartes da alma. Proporciona até a consciência do tédio. Passamos a ser turistas do pensamento em viagens infindáveis sobre possíveis bálsamos que suspendam a dor maior da existência e da fragilidade humana.
Neste dia, nesta hora, o que é pensado, falado ou escrito, tão rapidamente se sobrepõe a outro qualquer pensamento ou se torna obsoleto perante a rapidez dos contextos e descontextualizações. O organismo da sociedade não é imune. O organismo da sociedade é composto por biliões de células mutáveis, instituições vitais, estruturas com e sem código genético, e políticas sem prescrição médica ou suplementar. O organismo da sociedade tem receituário: dinâmicas mais anestésicas ou posições de adaptação analgésicas.
A medicina da sociedade não encontra diagnóstico da linha SNS24, não há uma monitorização de sintomas em tempo útil. Esta percepção pode ser dolorosa: há que antecipar sinais, prevenir diagnósticos incorrectos. É integrar, mas também permitir as ciências sociais e humanas auscultarem os sintomas e alargar a terapêutica. Em tempos de transformação social, do cair da ficha ou do cair do pano, nenhuma análise pode ser feita sem serem pensadas as pré-condições: dos grupos, das vulnerabilidades, das políticas, das acções. Da fragilidade da bagagem da saúde social, da sua capacidade e da sua resistência. Somos todos agentes da sua consistência.
A palavra “vírus” não surgiu neste texto. Mas quem o leu até esta linha, como também as entrelinhas, certamente encontrou uma elevada carga viral nas reflexões não sobre o todo, mas sobre a soma das partes.