A urgência da habitação pública
Em Portugal, o parque habitacional público representa apenas 2% da oferta global de habitação, valor muito abaixo do que se observa noutros países europeus.
O direito à habitação está consagrado na nossa Constituição desde 1976. As políticas públicas de habitação, pelo menos desde então, têm vindo a animar inúmeros debates a vários níveis, desde as autarquias ao Parlamento. Portugal conheceu, nas últimas décadas, vários programas públicos de promoção habitacional com resultados e durações variáveis, entre os quais podemos destacar o SAAL (criado em 1974), o PER (1993) e o Prohabita (2004). Não se trata, portanto, de um tema insólito ou exótico.
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O direito à habitação está consagrado na nossa Constituição desde 1976. As políticas públicas de habitação, pelo menos desde então, têm vindo a animar inúmeros debates a vários níveis, desde as autarquias ao Parlamento. Portugal conheceu, nas últimas décadas, vários programas públicos de promoção habitacional com resultados e durações variáveis, entre os quais podemos destacar o SAAL (criado em 1974), o PER (1993) e o Prohabita (2004). Não se trata, portanto, de um tema insólito ou exótico.
Contudo, merece hoje um novo destaque e redobrada atenção, pelo simples facto de vivermos um momento-charneira em que Portugal terá de escolher entre a construção de uma política pública de habitação robusta ou, por outro lado, a resignação e a permanência na cauda da Europa numa área tão importante e tão estruturante. Este é um daqueles momentos em que temos à nossa frente, e em simultâneo, os problemas e as soluções. Olhemos para ambos.
Em 2018, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) coordenou o Levantamento Nacional das Necessidades de Habitação. O que encontrou não foi animador: 25.762 famílias em situação de habitação claramente insatisfatória. O parque habitacional público disponível está muito longe de ser capaz de responder a este problema. Primeiro, porque a totalidade dos fogos de habitação social actualmente vagos apenas conseguiriam alojar cerca de um quarto destas famílias. Segundo, porque a distribuição entre fogos vagos e famílias carenciadas é muito desigual, ou seja, como é referido naquele levantamento, existem “disponibilidades em municípios sem carências e carências em municípios sem ou com disponibilidades mínimas de fogos”.
A insuficiência nacional nesta matéria pode também ser compreendida através de uma análise comparativa com outros países da Europa. Em Portugal, o parque habitacional público representa apenas 2% da oferta global de habitação, valor muito abaixo do que se observa noutros países europeus (Dinamarca: 20%, Reino Unido: 18%, França: 17%, Irlanda: 9%, Bélgica: 7%, Alemanha e Itália: 5%). Não será justo, contudo, concluir que o Estado Português não tem investido em políticas públicas de habitação.
O que acontece é que esse investimento tem sido feito de forma indirecta, sobretudo através da bonificação de créditos e da concessão de benefícios fiscais, apoiado na utopia da massificação da casa própria, relegando para segundo plano a promoção directa de empreendimentos habitacionais públicos ou o apoio ao arrendamento. Esta estratégia foi facilitada pela disponibilidade de financiamento externo a baixo custo a que a banca nacional teve acesso a partir de meados da década de 90.
Os resultados estão à vista: a ininterrupta promoção do sector financeiro, com a nacionalização dos custos e a privatização dos lucros; e um número muito baixo de fogos públicos, incapaz de dar resposta à crise habitacional que o país atravessa e que já não atinge apenas os mais vulneráveis mas também a classe média.
Se os dois parágrafos anteriores ilustram uma carência notória em território nacional no que a habitação pública diz respeito, a pandemia e as suas consequências em termos económicos irão obviamente agravar este cenário já em 2021, e reforçar a urgência da intervenção do Estado neste domínio. Ao contrário do que muitos anunciam, o reajuste do mercado imobiliário ao abrandamento da economia não será suficiente para colmatar esta lacuna. Em síntese, e tal como refere o relatório divulgado pela Moody’s a 23 de novembro, ainda que os preços reduzam, a capacidade dos jovens e das famílias com baixos rendimentos para comprar casa reduzirá ainda mais, devido à quebra expectável nos seus rendimentos e ao aperto nos critérios de concessão de crédito, exacerbando as desigualdades.
Não obstante o cenário aparentemente catastrofista atrás apresentado, as soluções existem, e algumas delas estão já em curso.
Em 2018 foi aprovada em Conselho de Ministros a Nova Geração de Políticas de Habitação. Entre vários objectivos, explicita-se a vontade de “aumentar o peso da habitação com apoio público, na globalidade do parque habitacional, de 2 % para 5 %, o que representa um acréscimo de cerca de 170 000 fogos”, missão a cumprir até 2026. Tendo em conta o estado da arte da indústria da construção em Portugal (que, com algumas excepções, está ainda muito ligada a métodos construtivos tradicionais e morosos) e o tempo que os processos de contratação pública acarretam, o prazo estabelecido para a execução deste objectivo é claramente utópico. Será impossível construir em meia dúzia de anos mais habitação pública do que construímos em quase meio século de democracia. Não obstante, o simples facto de se assumir esta missão e este prazo revela um entendimento claro do problema e da necessidade urgente de encontrar respostas.
Em 2019 foi criada a Lei de Bases da Habitação, com o objectivo de programar e executar uma política de habitação integrada nos instrumentos de gestão territorial, envolvendo os vários agentes públicos. Com ela cria-se uma nova figura no nosso planeamento territorial: a Carta Municipal de Habitação. Este documento, desenvolvido de forma independente por cada município, apresentará um diagnóstico das carências habitacionais e uma definição dos objectivos, prioridades e metas a alcançar em cada concelho. Esta abordagem, feita caso a caso, permitirá flexibilizar as estratégias de actuação e adaptá-las à realidade de cada lugar. A transferência desta responsabilidade para os municípios consubstancia um passo legislativo importantíssimo e faz crescer a expectativa quanto aos resultados a obter.
Em Outubro de 2020 o Governo entregou à Comissão Europeia a versão preliminar do Plano de Recuperação e Resiliência, traçado para enfrentar as consequências económicas e sociais da covid-19. Este plano prevê um investimento de 1633 milhões de euros na área da habitação, a executar até 2030, apoiado no financiamento do Mecanismo Europeu de Recuperação e Resiliência. Caso seja aprovado, e tendo em conta o período de implementação, será o maior programa de financiamento alguma vez executado em Portugal nesta área. O facto de a Lei de Bases da Habitação, essencial para a execução deste plano, ter sido concluída e publicada a escassos meses do despoletar da pandemia foi, no meio do desastre, uma coincidência feliz.
Por tudo isto, estamos perante uma oportunidade única. O problema é real e foi claramente identificado pelo Governo. Mas é também amplo, complexo e multidimensional. As soluções e as ferramentas para as por em prática existem, e tudo indica que estarão disponíveis dentro de muito pouco tempo. Neste caminho, o sucesso será determinado essencialmente pela capacidade de coordenação das várias peças do puzzle da administração pública: Governo, Áreas Metropolitanas, Comunidades Intermunicipais e Autarquias. Têm uma década para mudar o rumo das políticas de habitação em Portugal, concretizando o que há muito não passa do papel.