O perigo do “anda tudo a gamar”
É por isso que o “anda tudo a gamar” é a ideia mais perigosa em vigência na opinião pública, porque ela é um chamamento à legitimação do autoritarismo.
Das narrativas e afirmações mais perigosas que conhecemos de André Ventura – e conhecemos-lhe várias, entre elas a de mandar para a sua terra pessoas com cidadania portuguesa, afirmando uma distinção com base na cor da pele, veiculando, assim, uma ideologia de “raça portuguesa” –, a mais perigosa de todas é a de que “anda tudo a gamar”. Isto porque se a questão do “vai para a tua terra” alimenta o racismo estrutural da sociedade portuguesa, ela não tem uma penetração sociológica tão espessa quanto o “anda tudo a gamar”.
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Das narrativas e afirmações mais perigosas que conhecemos de André Ventura – e conhecemos-lhe várias, entre elas a de mandar para a sua terra pessoas com cidadania portuguesa, afirmando uma distinção com base na cor da pele, veiculando, assim, uma ideologia de “raça portuguesa” –, a mais perigosa de todas é a de que “anda tudo a gamar”. Isto porque se a questão do “vai para a tua terra” alimenta o racismo estrutural da sociedade portuguesa, ela não tem uma penetração sociológica tão espessa quanto o “anda tudo a gamar”.
A ideia de que o sistema político serve, sobretudo e quase exclusivamente, para aproveitamento da classe política, tem sido veiculada ao longo de séculos, desde a Monarquia, passando pela I República, pelo Estado Novo e entrando no período democrático, onde se instalou como telhado de vidro do regime. Este princípio corrompe a legitimidade do poder, ao destituí-lo da sua autoridade comunitária, i.e., enquanto produto da necessidade de um ordenamento e administração do coletivo, em que a comunidade cede livremente o poder a órgãos representativos, para passar a afirmar uma circunstância de poder discricionário, ilegítimo e autoritário. Ocorre, portanto, uma crise de representação dos vários núcleos sociais, em particular das franjas mais invisibilizadas e economicamente mais instáveis. De outra forma: o poder passa a ver visto como uma cadeia de transmissão elitista e burguesa, gerando a perceção pública de um “nós” contra “eles”, e abandonando-se de vez a crença no princípio da representação entre eleitores e eleitos. Reina, portanto, uma desconfiança generalizada face à classe política.
É nesta brecha aberta que correm as águas do populismo anti-sistémico em que André Ventura navega, por mais paradoxal que seja a sua trajetória política e profissional em face dos seus discursos. Mas onde reside, afinal, o perigo do “anda tudo a gamar”? Se à primeira vista esta narrativa é apenas mais uma no cardápio do populismo, a verdade é que ela serve uma agenda mais profunda e disruptiva. Com a repetição da ideia de que a classe política é corrupta e que defende os interesses dos setores económicos e empresariais que exploram as classes operárias ou que impedem o justo desenvolvimento da carreira da classe média, ou que apenas se instalam no poder para benefício próprio, verifica-se um desgaste abrupto da imagem dos atores políticos, em particular os deputados, principais visados neste processo.
Ora, é precisamente isto que André Ventura deseja, permitindo transformar esse desgaste ensaiado num “paso-doble” para a legitimação pública da mais-valia da supressão do sistema parlamentar, um dos seus objetivos políticos. Ao veicular a ideia de que os deputados são todos corruptos (menos ele), permite induzir o eleitorado a subtrair “por si” a conclusão de que a vida política está melhor livre da Assembleia da República e, desse modo, a justiça e a segurança estariam antes garantidas nas mãos de uma só pessoa, de um primeiro entre pares, i.e., de um líder autoritário, do Príncipe de Maquiavel ou, claro está, de um messias sebastianista. Ora, quem melhor para assumir esse papel de “eleito” do que alguém “de fora” do sistema, do que o denunciador dos vícios do mesmo?
É por isso que André Ventura quer rever a Constituição. Não para tornar mais eficaz o regime de Direitos, Liberdades e Garantias ou para otimizar os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade ou da universalidade, mas antes para mudar o regime político, para alterar o sistema parlamentar e o seu princípio da representação popular, impondo uma República que é, na verdade, de natureza presidencialista e, sobretudo, autoritária, sem a necessária separação entre poder legislativo, jurisdicional e executivo. É por isso que o “anda tudo a gamar” é a ideia mais perigosa em vigência na opinião pública, porque ela é um chamamento à legitimação do autoritarismo.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico