Em Bragança, há uma estrela que guia toda uma região
Bragança conquistou uma estrela Michelin e nunca mais foi a mesma. O trabalho de Óscar e António Gonçalves no G Pousada pôs a cidade, a região e os seus produtores no mapa gastronómico nacional e internacional. O projecto, entretanto pausado, retomará em breve, vencidas as restrições impostas pelo combate à pandemia.
Os filhos da terra Óscar e António Gonçalves – conhecidos como os Geadas – viram com naturalidade a distinção do G Pousada pelos críticos do Guia Michelin em 2018. Quando ficaram com a Pousada de São Bartolomeu, haviam traçado um plano, onde estavam a economia local e, garante António, aquela que viria a revelar-se uma verdadeira estrela do Norte. “Era a diferenciação. Não foi naïf”, afiança o mais novo dos irmãos, gestor da pousada, escanção do restaurante e o irmão com o pelouro da pesquisa de produto.
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Os filhos da terra Óscar e António Gonçalves – conhecidos como os Geadas – viram com naturalidade a distinção do G Pousada pelos críticos do Guia Michelin em 2018. Quando ficaram com a Pousada de São Bartolomeu, haviam traçado um plano, onde estavam a economia local e, garante António, aquela que viria a revelar-se uma verdadeira estrela do Norte. “Era a diferenciação. Não foi naïf”, afiança o mais novo dos irmãos, gestor da pousada, escanção do restaurante e o irmão com o pelouro da pesquisa de produto.
“O que se dizia nas notícias não era ‘Óscar e António’, era ‘Bragança tem a primeira estrela Michelin’”, recorda Óscar, o chef. E tinha. E isso revelar-se-ia edificante para a cidade e para a região.
“A partir do momento em que ganhámos a estrela Michelin, atingimos um determinado cliente que viaja só para isso. A cidade ganhou. As pessoas quando vêm a Bragança, como só trabalhamos ao jantar, vêm mais cedo e almoçam noutros restaurantes. Vão às lojas regionais, provam aqui e perguntam onde podem comprar”, reconhece. E se inicialmente o feito se fez sentir “mais no turismo”, depressa a dupla percebeu que a sua influência podia ter outro alcance. Em 2020 e com a chegada da primeira vaga da pandemia, isso tornou-se ainda mais evidente.
É certo que a região já tinha o butelo, as castanhas, as cascas, mas agora tem mais gente interessada nisso. “Se tiveres visibilidade, consegues ser influenciador. Não gosto da palavra, mas é isso”, atalha António Gonçalves.
António é um estudioso da “geografia do gosto” e da herança judaica na gastronomia da região e um embaixador dos vinhos de Trás-os-Montes. “Tenho, à vontade, 90 referências de vinho, produtores hão-de ser uns 30, dos quais dez serão novos nesta temporada.” Vinhos de garagem, a maioria sem distribuição estabelecida e que António escolhe em “80% dos pairings diários” no G.
Para a última carta do restaurante – entretanto encerrado este mês por causa da forte quebra nas reservas, decorrente das restricções à circulação –, foi “buscar produtores e projectos mais recentes, os Sarotos [Arribas Wine Company], a Menina d’Uva, os Romano Cunha e os vinhos do senhor Amílcar [Salgado, da Quinta de Arcossó]. Vinhos que praticamente só existem em Bragança.”
Sugere “sempre” vinhos da região. “Tem que ver com a surpresa e a filosofia de integração dos produtos.” Uma convicção que este ano os irmãos levaram mais longe, com o lançamento do Manicómio G. Um tinto feito só com vinhas velhas, em parceria com a Arribas Wine Company, e que já vai no segundo ano de vinificação. Antes de o G e a pousada fecharem portas, no último dia de Novembro, a edição de 2019 (350 garrafas apenas) já se servia – só se servia – à mesa do restaurante estrelado.
Dos arrabaldes para a mesa dos chefs
Maria Isabel Alves, de Vinhais, ainda se lembra de, em miúda, aí há uns 50 anos, fazer cuscos (uma versão transmontada dos cuscuz) com a mãe na aldeia bragantina de Espinhosela. Reencontrou-se com a arte há 15 anos e hoje faz cuscos quase diariamente. Depois de fornecer os Geadas, passou a vender para outros chefs. “O seu irmão arranjou-me lá para baixo uns chefs, em Setúbal e em Lisboa, e aqui em Guimarães”, diz a António. Lá para Fevereiro, Maria não terá mãos a medir com a Feira do Fumeiro de Vinhais.
“Há muita gente que vem à feira de propósito pelos cuscos. Houve muita divulgação, está em curso a certificação [no Centro de Investigação de Montanha do Politécnico de Bragança] e entretanto aqui o irmão do António ganhou a estrela. Somos só três [mulheres em Vinhais] a fazer cuscos, isto dá muito trabalho.”
“Cada euro que eu pago à dona Maria Isabel é bem pago. Eu faço os meus, sei o que custa. O que é artesanal tem de ser valorizado. Para activar a economia devemos partir do local para o global. O que falta muitas vezes é ter pontos de ignição”, diz António Gonçalves. A estrela Michelin foi um desses pontos de ignição, admite, mas o abastecimento local não é nada de novo para os Geadas. “Lembro-me de ir com os meus pais a estas quintas à volta de Bragança comprar frangos, ovos, legumes.”
É de uma dessas quintas que os irmãos recebem cabrito serrano – uma das várias carnes com Denominação de Origem Protegida certificadas na região. No Verão, serviu-se no G o produto de Manuel Gonçalves, funcionário público, apicultor e “cabreiro nos tempos livres”. “As cabras começaram por brincadeira” e para “limpar os lameiros”. Hoje é sua uma das quatro cabradas existentes em Bragança – cinco, se incluirmos o rebanho da Escola Superior Agrária.
“Não se conseguem fixar pessoas nos locais de origem se não houver motivos fortes. E o trabalho que o António está a fazer vai dar frutos dentro de dez anos. Ele faz que outros estabelecimentos consumam mais os produtos que eles têm na casa deles. Isso vai acontecer. Quando aparece alguém que transforma assim um produto e consegue dar nome a um produto, o trabalho dos produtores é valorizado”, acredita.
A taxa de incidência da covid-19 nas últimas semanas não deixou outra alternativa que não fosse fechar, para já até ao final de Dezembro, mas António e Óscar garantem que tudo farão para “defender a dama” e as pessoas que para ela trabalham, contando regressar em breve com mais força e uma forma diferente de comunicar. Que evidencie esta ligação aos produtores locais e ao produto e à tradição regionais. “É uma dinâmica que fica interrompida, mas a altura é de reflexão”, nota António. “Esperamos que, daqui a algum tempo, possamos estar a falar de encontrar outros veículos para chegar a bom porto.”
Das navalhas à cutelaria fina
Para Gilberto Ferreira a ligação aos Geadas está aos poucos a permitir-lhe mudar de vida. “Durante o dia sou comercial, vendo fumeiro. Os chefs nem todos os dias compram facas, mas o importante é que fique o contacto. Tenho feito bastantes facas ultimamente e já me via a fazer isto a tempo inteiro este ano. Mas aconteceu isto.” “Isto” é, uma vez mais, a pandemia, que veio atrasar a vida de todos – mas não lhes tolheu os sonhos.
Gilberto faz facas de aço forjado, com cabos das mais variadas madeiras. Para os Geadas fez a primeira faca personalizada do G Pousada, uma faca de manteiga, depois fez as facas de carne. E a relação dura até hoje, com o restaurante a introduzir uma novidade a cada mudança de carta.
Numa região onde toda a gente tem uma, Gilberto começou por fazer navalhas “aos 14, 15 anos, em corno de veado”. “Uma parte de um animal que ficaria perdida no monte”, explica Óscar, onde os “veados todos os anos largam as suas hastes”.
“Era o meu forte, mas depois eles apareceram, queriam algo típico da região, feito por alguém de cá, e deram-me ideias novas”, conta o cuteleiro cujos dias de trabalho têm 12 horas. E para que outros chefs faz facas? “Prefiro que sejam os clientes a falar do meu trabalho. Podem não gostar [da publicidade]. Mas tenho feito para alguns chefs, cá dentro e alguns também lá fora.”
“[Já lhe comprámos] 110 ou 120 facas só para o serviço ao cliente. Pensamos ao contrário, se calhar”, partilha António. E Gilberto sentencia: “Vós pensais bem.”
“O Gilberto também me reutiliza as facas para o ConTradição [o gastrobar que os irmãos abriram no Verão para manter toda a equipa do G e da Pousada]. E de cada vez que vou a algum lado faz uma lembrança que eu levo para os meus colegas. Ofereci, por exemplo, ao Paolo Casagrande uma faca personalizada. Ele nunca tinha comido cascas [feijões colhidos ainda nas vagens, também conhecidos como casulas]. Mandámos-lhe as cascas e ia lá também uma faca do Gilberto”, conta Óscar, cuja faca de trabalho também saiu da oficina-garagem do homem de Aveleda. “É com buxo aqui do rio Sabor e aço, e tem o peso adequado.”
No G Pousada não podia ser de outra forma: não há caviar e também não há Laguiole. “Na restauração internacional há uma necessidade muito grande de autenticidade. Este restaurante não poderia estar em Hong Kong ou Nova Iorque”, remata António. “Quem escrever isso simplesmente não percebeu o conceito.”