Saudades de viver o Museu
A pandemia fez retornar o Museu ao seu período mais hermético, a meados do século XIX e ao seu encapsulamento num determinado padrão de visitantes. É preciso trabalhar para que esta situação não se mantenha quando esta crise pandémica acabar.
Os museus não vivem tempos fáceis fruto da situação atual de emergência sanitária. Foram dos primeiros espaços culturais a fechar e dos últimos a abrir durante a primeira onda, veem agora os seus horários reduzidos, passam a estar menos dias e menos horas abertos ao público, passaram a ter visitas circunstanciais e os seus visitantes tendem a ser mais especializados: visitam-nos, sobretudo, académicos e cientistas, para tirar fotografias ou amostras de objetos, e colecionadores, com o fim de comparar ou apresentar obras que possam ter interesse para o espólio do museu.
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Os museus não vivem tempos fáceis fruto da situação atual de emergência sanitária. Foram dos primeiros espaços culturais a fechar e dos últimos a abrir durante a primeira onda, veem agora os seus horários reduzidos, passam a estar menos dias e menos horas abertos ao público, passaram a ter visitas circunstanciais e os seus visitantes tendem a ser mais especializados: visitam-nos, sobretudo, académicos e cientistas, para tirar fotografias ou amostras de objetos, e colecionadores, com o fim de comparar ou apresentar obras que possam ter interesse para o espólio do museu.
A pandemia fez retornar o Museu ao seu período mais hermético, a meados do século XIX e ao seu encapsulamento num determinado padrão de visitantes. Os museus, involuntariamente, voltaram a ser espaços de estudo tipológico das coleções e de contemplação da estética e do valor da arte. É preciso trabalhar para que esta situação não se mantenha quando esta crise pandémica acabe, é importante compreender que os museus precisam de ser fruídos por um público diverso e não restrito, que consigam não só atrair académicos e colecionadores, mas também todos os outros: os mais cultos e os menos cultos; os mais velhos e os mais novos; os com pouco dinheiro e os com muito dinheiro; os nacionais e os estrangeiros; os que apresentam necessidades educativas especiais e aqueles que não...
Como se sabe, no imediato da Revolução Francesa, quando surge a ideia tardo-iluminista de conceber um “Museu” (inspirada no Mouseion da Grécia Antiga), a perspetiva era sobretudo universalista e educativa (evidente por exemplo num projeto intermédio anterior: o British Museum, uma espécie de gabinete de curiosidades e biblioteca, de “acesso público” a partir de 1759). Pretendia-se uma instituição capaz de congregar o melhor acervo artístico da Coroa, dos nobres e também da Igreja (que estava distribuído por palácios, igrejas, gabinetes de curiosidades), tornando o melhor património artístico da nação acessível e aberto a todos os cidadãos. Foi assim, sob este mote, que surgiu o Louvre, em 1793, e o Museu dos Monumentos Franceses, em 1795 ou, mais tarde, o Museu Nacional da Dinamarca, em 1807.
Mas os museus não conseguiram cumprir com os ideais universais que os lançaram, nem sempre puderam manter as suas portas abertas e, com o tempo, foram-se tornando em instrumentos de afirmação (supostamente científica) das nações, e consequentemente, lugares de poder, de configuração das singularidades culturais nacionais e, também, da glorificação da superioridade dos vencedores sobre os “outros povos”. Esse “Museu-Poder” nacional, adquirido enquanto espaço de demonstração da realidade ou dos “factos”, com a sua respetiva prova material (os objetos que expõe ou guarda), levou a que gradualmente se tornasse num “lugar de exclusividade”; tendência que já ocorria nos gabinetes de curiosidades, centrando o seu discurso nos “especialistas”: os únicos que, de acordo com o entendimento da época, poderiam compreender ou apreciar a riqueza e complexidade das coleções custodiadas.
E foi assim no Ocidente até à paulatina mudança que começou a ocorrer no pós-guerra (1945): fruto de uma massificação do acesso escolar, da generalização das férias, do estado de bem-estar social, descolonização e da não menos relevante alteração do conceito de Património, que deixou de se centrar na valorização nacional e passou a ser universal, de todos os povos e de todos os componentes do povo. Os museus vinham assim traçando um caminho novo, tornando-se cada vez mais em espaços de diálogo, abertos à diferença, à crítica e à criatividade – após, é verdade, um breve período de fascínio com as exposições blockbusters –, mas a pandemia veio alterar e, de certa forma, refrear essa “força transformadora” de aproximação às questões da sociedade contemporânea.
No Museu tem sido um ano de silêncios... sem escolas, com visitas curtas e abafadas pela voz atrás das máscaras, sem que se possa pensar a curto prazo em conceptualizar novas exposições que permitam mediar o objeto físico, em exposição, com as pessoas; num diálogo com a História, com a Ciência, com a Arte e com o Tempo.
Alguns colegas acharão que este é um momento ótimo para “arrumar a casa”, rever e atualizar o inventário e, ainda, fazer os restauros que sempre se vão adiando. Têm razão… claro que têm razão, mas não é despiciendo refletir um pouco: o que representa o Património sem o fator humano? Preservamos, inventariamos e estudamos para que o legado perdure, mas se não houver ninguém do outro lado? O Património só se mantem se existir alguém para o valorizar, é um processo contínuo, de construção empática, na qual o material (objeto) serve de vínculo que liga espiritualmente as gerações ao longo do tempo.
A pandemia irá acabar – a história e a ciência parecem indicar-nos que sim –, mas que museus vamos ter após o regresso “à normalidade”, com uma crise que se avizinha e com uma orgânica cultural a caminhar para a falência? É também tempo de refletir sobre a função dos museus. Tem-se falado muito nos últimos tempos da função social dos museus: mas que função ou contributo social pode ter uma instituição fechada e parada, sem agir? Em que circunstâncias práticas os museus podem contribuir em tempo de pandemia, e como?
Não tenho grandes respostas – não é fácil tê-las nestas circunstâncias –, mas muitas dúvidas. Apenas sei que tenho saudades de ver os museus com pessoas: do olhar curioso das crianças e jovens, do interesse dos mais velhos, das perguntas inteligentes e das perguntas estapafúrdias, pois, para mim, o Museu sem pessoas e movimento não se diferencia muito de uma grande reserva ou armazém que tanto pode ser de uma empresa de transporte de bens, como de um hipermercado… cheios de objetos, arrumados por características e tamanhos, mas sem ninguém: vazios de espírito... e, infelizmente, não temos como suprir essa ausência, nem com as mais criativas visitas virtuais.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico