Viajar é preciso

Para viajar, basta existir, disse alguém que não existiu durante a covid-19. De pantufas, embrulhada numa manta a alternar séries da Netflix, vem-me a saudade de viagens passadas, a ânsia de viagens futuras e a imaginação de viagens possíveis.

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"A viagem verdadeira só acontece quando sabemos navegar os ventos do inesperado" Sebastian Pena Lambarri /Unsplash

Lembro-me de, em criança, assistir às apresentações de slides das viagens que os meus pais faziam.

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Lembro-me de, em criança, assistir às apresentações de slides das viagens que os meus pais faziam.

Foi assim que tive o primeiro acesso ao mundo. E o mundo parecia bem mais interessante do que o sítio onde eu vivia. Quem quer que fossem aqueles senhores projectados na parede, eram mais interessantes que os meus pais. Eram, de facto, muito parecidos com os meus pais e eles garantiam que eram eles. Mas apareciam com chapéus grandes, camisas coloridas, óculos de mergulho, barbatanas. Exibiam grandes escaldões nas caras sorridentes e faziam poses ao lado de pirâmides, vulcões ou montanhas cobertas de neve. Tinham um ar divertido e aventureiro, e contavam histórias que envolviam tubarões, balões de ar quente e escaladas.

“Nadar com tubarões, o meu pai? Ele, que faz colecção de relógios e entra em pânico quando não sabe dos óculos?!” Não batia certo. Foi assim também que obtive a primeira pista sobre uma das melhores possibilidades que viajar nos traz: a de podermos ser temporariamente outras pessoas. Pessoas diferentes das que somos em casa. Pessoas que subitamente gostam de fazer montanhismo ou de ir a museus, de fazer mergulho ou de ler Proust.

Percebi também que as histórias de viagem são adornadas para adquirirem maior grandiosidade.

Na infância, lembro-me de ter outros vislumbres do que seria o mundo, quando alguma tia viajava e chegava lá a casa um postal. Aquele cartão gatafunhado era um periscópio pelo qual eu espreitava para o que quer que houvesse lá fora, no vasto globo. O postal tinha uma fotografia de uma paisagem, um monumento, e, às vezes, um desenho de um Mickey a espreitar. Tinha descrições curtas e pouco esclarecedoras como “estou aqui nesta cidade linda a pensar em vocês” e eram enviados “beijinhos transatlânticos”. A minha imaginação ia para aquele lugar distante, onde a minha tia e o Mickey estariam a beber chocolate quente e onde, de certeza, tudo estaria melhor.

Quando atingi a ansiada meta da maioridade, voei como uma flecha em direcção ao mundo.

A minha alma, que já se adivinhava de viajante, comprovou a sua essência. E, durante anos, viajei sozinha, das malas fiz armários e, dos aviões, morada. Soa mais poético do que realmente é, agora, sem o ar condicionado do avião a entupir-me as narinas. Ainda assim, é difícil não ver poesia no acto de nos elevarmos acima das nuvens.

E fui também, a cada viagem, outra pessoa. Se as minhas viagens foram deambulações nas quais atravessei as sucessivas fases do ser? Um reflexo da vida e das suas etapas onde, na condição de passageira, revia a também passageira condição da vida? Não necessariamente. Era nas pequenas coisas. Nas viagens surpreendi-me a ser a pessoa que passou a gostar de chá e que o pede sempre no avião, que, feliz, abdica do colchão pela esteira e que vai de galochas e capa de chuva caminhar três horas para ver ruínas incas.

Nenhuma viagem concreta me fez a transformação renovadora da qual tanta gente fala, pessoas que voltam da Índia e alegam ter-se encontrado. Eu perdi-me um pouco mais a cada viagem. Mas de todas trago um vestígio, como um pequeno souvenir na alma.

Por mais previsíveis que sejam as viagens, num mundo com Google Maps e Booking, sempre parti para elas com um ímpeto homérico, mesmo que fosse de Uber para o hotel, soubesse a exacta hora da chegada e já tivesse lido 37 críticas ao pequeno-almoço. Os nossos antepassados fabulavam com aquilo que o conhecimento ainda não explicava, criando terras de canibais, monstros em rochas e sereias no mar. Agora, resta-nos pouco para fabular e buscamos o conforto e a review que faça antever o imprevisto. Mas viagem sem imprevisto não é viagem. Agustina resumiu bem: “A viagem é a intimidade do importuno.” A viagem verdadeira só acontece quando sabemos navegar os ventos do inesperado.

Para viajar, basta existir, disse alguém que não existiu durante a covid-19. De pantufas, embrulhada numa manta a alternar séries da Netflix, vem-me a saudade de viagens passadas, a ânsia de viagens futuras e a imaginação de viagens possíveis. Há algo de místico na viagem que torna a sua fantasia ainda melhor do que a viagem em si. “É-se feliz na Austrália, desde que lá não se vá”, disse Álvaro de Campos. Concordo. Nunca fui à Austrália e nunca fui tão feliz lá como agora.

Mas viajar é preciso, e mal posso esperar por voltar a fazer de outras ruas os meus caminhos, de atravessar a pé novas pontes, de imaginar o que se está a dizer noutras línguas, de povoar com curiosidade outras esplanadas. De percorrer o céu ao lado de desconhecidos e de voltar com fotografias para projectar na parede e novos carimbos no coração.