Carta de amor a Maria de Sousa num prémio com o seu nome

A Ordem dos Médicos e a Fundação Bial anunciam a criação do Prémio Maria de Sousa, em homenagem à imunologista que morreu de covid-19 a 14 de Abril deste ano. Até 25 mil euros, a primeira edição do prémio, destinado a jovens cientistas portugueses até 35 anos que tenham projectos em ciências da saúde, abrirá as candidaturas de 1 de Janeiro a 31 de Maio de 2021. O neurocientista Rui Costa, antigo aluno e amigo da imunologista que “viu” antes dos outros uma relação entre o sistema imunitário e o metabolismo do ferro, é o presidente do júri.

“Maria de Sousa foi uma cientista que fez descobertas importantes, mas também foi uma cientista que fez escola com cientistas espalhados por todo o mundo”, sublinha Rui Costa, director do Instituto Zuckerman da Universidade de Columbia (em Nova Iorque) e coordenador do conselho científico da Fundação Champalimaud (em Lisboa). “Ela deu oportunidades a muitos jovens, como eu próprio, abriu-lhes as portas do mundo da ciência, ajudou-os a realizar o potencial que tinham. Este prémio pretende homenagear e continuar esse trabalho transformador da Maria de Sousa”, conta o neurocientista a propósito dos objectivos deste galardão a que podem candidatar-se investigadores portugueses residentes em Portugal ou no estrangeiro. Os 25 mil euros contemplam um estágio num centro de investigação de excelência, incluindo despesas de deslocação, alojamento e custos científicos.

Era essa preocupação de Maria de Sousa (1939-2020) com os jovens que Luís Portela, presidente da Fundação Bial, e Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, destacam em comunicado. “Este prémio é uma homenagem a uma personalidade ímpar da ciência a nível mundial, que marcou de forma incontornável o desenvolvimento científico e académico em Portugal. Ao premiar jovens investigadores estamos a perpetuar o trabalho único de Maria de Sousa, que sempre procurou criar condições para que os jovens cientistas pudessem concretizar os seus sonhos e percursos científicos”, refere Luís Portela. “Maria de Sousa desbravou caminho e demonstrou a importância da associação da clínica à investigação, sem nunca perder a capacidade de envolver os mais jovens e sem esquecer a importância da ética e do humanismo”, acrescenta Miguel Guimarães.

“Uma amizade a sério, com o amor dos amigos”

Tal como Rui Costa, os outros membros do júri eram-lhe próximos: Maria do Carmo Fonseca, presidente do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa; Graça Porto, professora catedrática do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto; Miguel Castelo-Branco, director do Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional da Universidade de Coimbra; e Joana Palha, vice-presidente da Escola de Medicina da Universidade do Minho.

“A Maria era uma das minhas melhores amigas, uma daquelas amizades que não olha a idades nem cultura; como a Maria dizia, uma amizade a sério, com o amor dos amigos”, conta-nos Rui Costa. Como começou esta relação? “Conheci a Maria no programa de doutoramento, depois ela foi minha mentora no doutoramento e, a pouco a pouco, desenvolvemos uma amizade para além da ciência. Sou presidente desde 2008 de uma fundação que a Maria tinha começado (o American-Portuguese Biomedical Research Fund) e conversávamos muito um com o outro sobre a vida, a arte, o conhecimento, os passos que dávamos, as decisões que tomávamos, como mudar o mundo”, recorda o cientista. “Nas épocas festivas, antes de estar com a minha família, ia sempre estar com a Maria, a minha família já sabia. E como eu havia outros, um grupo de gente que estava nessa esfera e que formava uma rede, uma tertúlia especial de gente que quer utilizar o conhecimento para mudar o mundo. E muita gente jovem; sempre.”

Quando pedimos a Rui Costa que descrevesse a cientista e a pessoa, ele considera-a “brilhante, muito perspicaz, muito diferente”. “Não tinha medo de pensar coisas diferentes, mesmo se pensassem que estava louca. Mas depois procurava a verificação. Descobriu coisas importantes e lançou conceitos que hoje fazem parte dos livros, mas que quase ninguém sabe que foram coisas que a Maria fez. Uma vez perguntei-lhe se não a incomodava que tantos não soubessem o que ela fez – isto foi a seguir a uma palestra de um investigador em Nova Iorque que falou sobre as coisas que ela estabeleceu, mas nem se apercebeu de que tinha sido ela a descobri-las nem que estava na audiência. Ela disse-me: ‘Quando descobres algo na ciência, essa descoberta fica sem dono, fica de todos, passa a ser parte do conhecimento universal.’”

Ainda sobre a cientista e pessoa, Rui Costa regressa aos jovens. “Sempre se rodeou de gente nova com talento e elevou esse talento. Mas também era muito exigente e muito dura. Todos os que eram próximos tiveram os seus momentos com a Maria em que ela colocou os pontos nos is. Mas não desistia das pessoas.” Diz ainda que tinha “um sentido de humor fantástico e, no obituário que a revista The Lancet lhe dedicou, Rui Costa salienta essa faceta. “Em cada encontro com ela havia muitas gargalhadas.”

“Uma pessoa que amava a vida toda”

O que descobriu a investigadora que faz hoje parte dos livros, enquanto esteve em Londres e Glasgow na década de 1960, prende-se com a migração organizada dos linfócitos (células do sistema imunitário) para os gânglios linfáticos e o baço. Mais tarde, em Nova Iorque, a partir de meados da década de 1970, começou a investigar a relação entre o sistema imunitário e o ferro.

É essencialmente o caminho até à descoberta dessa relação, uma ideia totalmente inovadora, que é narrado no livro Um Mundo Imaginado, da historiadora britânica June Goodfield, publicado originalmente em 1981. A Gradiva publicou-o a primeira vez em 1988 e, depois da morte de Maria de Sousa, reeditou-o em Abril numa homenagem à cientista. “Foi uma área totalmente nova no mundo”, como disse a hematologista Graça Porto no dia da morte de Maria de Sousa, que regressou a Portugal em 1984 e fundou, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, o mestrado em imunologia e depois, em 1996, foi responsável na Universidade do Porto pelo primeiro programa doutoral de uma universidade portuguesa em biologia básica e aplicada (o GABBA).

A ligação de Maria de Sousa à Fundação Bial, uma das instituições que cria agora o prémio com o seu nome, iniciou-se quando recebeu o Grande Prémio Bial de Medicina de 1994 pelo trabalho Contribuição para a Caracterização da Ecologia e da Biologia do Sistema Timo-Dependente: Memórias, Percursos e Esboço de uma nova Teoria. A partir daí foi membro do júri deste prémio em três edições, sua presidente em 2000 e, entre 2010 e 2014, assumiu o cargo de administradora da Fundação Bial.

Maria de Sousa, ou melhor a personagem Ana Brito (apelido do meio da imunologista) no livro de June Goodfield, é acompanhada durante cinco anos, de 1975 a 1980, pela autora britânica que nos deixa espreitar os momentos de criatividade da cientista, a forma de pensar e trabalhar, os avanços e recuos, as dúvidas, as dificuldades como as rejeições de financiamento, a excitação da descoberta, a solidão de quem vê algo que os outros ainda não viram, os pensamentos, os estados de alma, o que a deixava triste e feliz – como a música ou a poesia (“se eu fosse poeta a tempo inteiro, cantando o dia cinzento e a noite prateada, gostaria de ser Neruda”, disse numa carta à autora do livro, considerando que o poeta chileno “traduziu em poemas tudo aquilo que devia preocupar a humanidade inteira”). Vemos o processo científico enquanto tal, e um pouco da cabeça de Maria de Sousa. “É importante lembrar-me. A ciência é conhecimento, é amor, é compreensão. (…) O que quero é acabar esta coisa de maneira impecável… Quero que fique completa e económica como um poema”, disse ela a June Goodfield.

“Esse livro influenciou muita gente, e foi publicado sem que no início se soubesse que era sobre a Maria. Quando faleceu e eu enviei uma mensagem ao instituto onde sou director, recebi muitas mensagens, desde a Europa, Estados Unidos e Ásia, de cientistas que descreveram como esse livro as mudou”, lembra Rui Costa. “Revela como a Maria se relacionava com a ciência e com a descoberta científica, mas retrata uma certa altura da vida da Maria. É um mapa do tesouro, porque nos ensina a procurar. Mas a Maria evoluía muito e refinava sempre a forma de fazer, aprendia, aperfeiçoava.”

Já internada com covid-19, escreveu a 3 de Abril o seu último poema, percebendo o que lhe ia acontecer, Carta de amor numa pandemia vírica: “Gaitas-de-fole tocadas na Escócia/Tenores cantam das varandas em Itália/Os mortos não os ouvirão/E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio/Quem pretendem animar?/As crianças?/Mas as crianças também estão a morrer/Na minha circunstância/Posso morrer/Perguntando-me se vos irei ver de novo/Mas antes de morrer/Quero que saibam/O quanto gosto de vós/O quanto me preocupo convosco/O quanto recordo os momentos partilhados e queridos/Momentos então/Eternidades agora/Poesia/Riso/O sol-pôr/no mar/A pena que a gaivota levou à nossa mesa/Pequeno-almoço/Botões de punho de oiro/A magnólia/O hospital/Meias pijamas e outras coisas acauteladas/Tudo momentos então/Eternidades agora/Porque posso morrer e vós tereis de viver/Na vossa vida a esperança da minha duração.”

Para Rui Costa, este poema diz-nos muito da sua capacidade de olhar o mundo e prever para onde vai. “Principalmente, revela uma pessoa que amava a vida toda, com os pequenos detalhes, e que amava os seus amigos, e acaba com a noção de que a esperança de continuação dessa vida seria através das existências dos outros. No fundo, este prémio continua a linha dessa vida.”