Trump e o populismo de direita
Que os antipopulistas desfrutem de uma merecida vitória eleitoral. A era Trump acabou (?) e, afinal, foi Biden que os livrou da vergonha que tiveram e tivemos da América nos últimos quatro anos. Mas não sejamos ingénuos: não se derrota o populismo no longo prazo sendo simplesmente antipopulista.
É tentador concluir que a derrota de Donald Trump – que ele ainda não aceitou – é um sinal de que a “onda populista” que viu o populismo de direita triunfar na década de 2010 está finalmente a retroceder. Com o comandante geral populista a perder eleições, os populistas de direita, em todo o mundo, estão certamente nervosos, questionando-se se não poderão ser eles os próximos.
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É tentador concluir que a derrota de Donald Trump – que ele ainda não aceitou – é um sinal de que a “onda populista” que viu o populismo de direita triunfar na década de 2010 está finalmente a retroceder. Com o comandante geral populista a perder eleições, os populistas de direita, em todo o mundo, estão certamente nervosos, questionando-se se não poderão ser eles os próximos.
No entanto, já vimos e ouvimos isso antes. Em 2017, quando Emmanuel Macron, arrancando do zero, derrotou Marine Le Pen na França e Mark Rutte derrotou Geert Wilders na Holanda, muitos escritos perguntavam: os dias do populismo estão contados? Acho que todos sabemos a resposta, com os exemplos de Narendra Modi na Índia, Viktor Orbán na Hungria e Jair Bolsonaro no Brasil.
Não nos enganemos: a vitória de Joe Biden sobre Trump é uma vitória monumental e decisiva, não apenas para os democratas nos Estados Unidos, mas para todos democratas do mundo. Houve um suspiro de alívio coletivo nas democracias liberais quando a notícia de que o caso mais emblemático e famoso de populismo de direita aliado à extrema direita estava, com dificuldade e olhando para trás, a fazer as malas. Mas assumir que a vitória de Biden soa como a sentença de morte para os populismos, ou que fornece um modelo claro para derrotar os populismos e que deve ser replicado noutros países, será provavelmente um erro.
Essencialmente por três questões. A primeira é presumir que a eleição num único país pode servir de termómetro para as tendências globais – mesmo que seja o país mais poderoso e rico do mundo. A ciência política fala-nos de um processo de “difusão”, no qual os eventos políticos num país influenciam os de outros, mas este processo não é linear. Embora partidos e movimentos em todo o mundo, que se opõem ao populismo de direita e ao nativismo se revejam na vitória de Biden e estejam a estudar o que funcionou, não há indicação nem garantia de que a estrutura política populista de outros países cairá, já que em muitos tem um sucesso que é mais antigo e está mais enraizado do que o de Trump. Biden teve ainda a seu favor a forma desastrosa com os populistas lidam com a adversidade (pandemia). E, para além disso, embora Trump possa (eventualmente) ter terminado, isso não significa que o populismo acabe como ele: os líderes populistas e os partidos de direita tendem a ter longos legados institucionais e vamos assistir ao Partido Republicano a discutir o seu futuro pós-Trump – e a questão política principal vai ser continuar ou não no caminho populista em que ele o colocou – por meses ou anos.
A segunda questão é não ignorar quem é Trump – um personagem singular e exclusivo, bizarro, venal e odioso, mesmo em comparação com a galeria de trapaceiros que compõe a direita populista global. Sendo o populismo um sistema político suportado no apelo ao “povo verdadeiro” contra a “elite corrupta” e os “políticos”, a invocação de perseguido, a ausência de ética e o uso de “maus modos” para demonstrar a sua proximidade com as “pessoas reais” levou Trump ao extremo: Twitter, Fox e propaganda.
Trump foi e é capaz de tudo. Apenas Rodrigo Duterte nas Filipinas ou talvez Bolsonaro se lhe aproximam em termos da sua capacidade de mentir, manobrar, cortejar, ofender e ultrajar: a maioria dos populistas de direita sabe, pelo menos, quando diminuir ou aumentar o tom, um equilíbrio que Trump foi relutante ou incapaz de alcançar. Perante os factos, é provável que esta eleição não deva ser lida como um voto a favor de Biden, mas como um voto forte contra Trump. A isso os cientistas políticos chamam de “partidarismo negativo” – a ideia de que se vota contra candidatos e partidos que se não querem e não a favor de outros. Trump é uma figura tão detestável, e a usura do poder foi tal que muitas pessoas votaram em Biden, pois queriam somente exorcizar a personagem e a família e salvar a república.
Aqui a terceira questão, que é talvez a mais importante: o tipo de “antipopulismo” protagonizado por Biden não parece uma resposta consistente ao populismo de direita. Por antipopulismo, não nos referimos a uma concepção ideológica ou solução governativa, mas sim ao fenómeno pelo qual os oponentes do populismo se reúnem tacticamente para “derrotar” o populismo. Este antipopulismo tem uma imagem centrista e moderada, oferecendo uma volta ao “normal”, um regresso à “racionalidade” e à “ciência” – quase a imagem de que o bom senso vai regressar: exatamente o que Biden ofereceu em comparação com o caos absoluto da administração Trump.
De forma clara: o antipopulismo funcionou até aqui. Biden conseguiu reunir uma coligação de grupos díspares em nome da derrota de Trump – esquerdistas, liberais e centristas democratas, republicanos moderados da linha “Never Trumpers” e do Projeto Lincoln. Mas e agora? Com Trump (quase) fora do caminho, em que é que esses grupos se agregam? Na “Decência"? Na “Normalidade"? Na República? No bom senso? Mas estas não são base para um projeto ideológico sustentável ou ingredientes para uma identidade política. Cumpriram o seu papel como parte de uma estratégia eleitoral, mas não têm longo prazo e é necessário imaginação política e coragem para encontrar uma saída para isso.
Deste modo, embora a adoção do centrismo possa ser atraente no momento, já que Biden clama por unidade, compromisso e consenso, é importante ter em mente que tal forma de política é frequentemente o alimento natural do populismo, ainda mais quando vai ter consigo movimentos radicais de esquerda.
O povo americano tem o direito de exigir não uma mudança “normal”, mas sim uma mudança sistémica séria numa nação fragmentada e profundamente desigual. Fracassar em responder a estes desafios pode criar condições nas quais a maioria da população fique ainda descontente e volte a jogar aos dados com populistas.
Que os antipopulistas desfrutem de uma merecida vitória eleitoral. A era Trump acabou (?) e, afinal, foi Biden que os livrou da vergonha que tiveram e tivemos da América nos últimos quatro anos. Mas não sejamos ingénuos: não se derrota o populismo no longo prazo sendo simplesmente antipopulista. O sucumbir do populismo aqui, como nos EUA, requer políticas públicas anti-corrupção; sociais; de meritocracia; de justiça rápida; do ressurgimento de grandes figuras públicas.
Mas ensina-nos o essencial do populismo de direita: a criação de campanhas de mentira e falsas notícias com profissionais ao seu serviço; a subida democrática ao poder; a destruição de todos os poderes que se lhe opõem; o nacionalismo e o nativismo; a rebeldia em aceitar resultados de derrota e a negação da ciência perante a crise sanitária. De tudo isto os americanos tiveram que provar.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico