Nem novo, nem livre: o ciberespaço e a geopolítica mundial
O excepcionalismo do ciberespaço hoje é uma evidente utopia. A sua geopolítica é a mesma do mundo em transformação do século XXI.
1. Se as coisas tivessem corrido como se imaginava nos primórdios da Internet, falar em geopolítica do ciberespaço seria uma mera especulação teórica. Em meados dos anos 1990, a “Declaração de Independência do Ciberspaço” escrita por John Perry Barlow — um dos fundadores da Electronic Frontier Foundation — espelhava a utopia dos pioneiros da Internet e o imaginário de uma globalização libertária. O próprio termo ciberespaço, que é fluído e sem contornos precisos, não foi concebido com um conceito científico. O seu uso emergiu a partir de uma utópica/distópica obra de ficção científica de William Gibson, Neuromancer, publicada 1984. (Ironicamente, coincidiu no ano da sua publicação com a distopia totalitária 1984 de George Orwell). Mas, para os pioneiros da Internet, o ciberespaço não era um mundo distópico, era antes um novo mundo, um mundo livre e imaterial aberto a todos num espírito de partilha e não lucrativo. Esse novo mundo livre escapava à interferência e controlo dos Estados e era, pela sua própria natureza, um terreno fora das lutas geopolíticas. Todavia, a evolução ocorrida nos último quarto de século foi radicalmente diferente. As disputas geopolíticas prolongam-se agora no ciberespaço, replicando aí ambições de poder, de influência e de soberania que são (quase) tão antigas quanto a própria humanidade.
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1. Se as coisas tivessem corrido como se imaginava nos primórdios da Internet, falar em geopolítica do ciberespaço seria uma mera especulação teórica. Em meados dos anos 1990, a “Declaração de Independência do Ciberspaço” escrita por John Perry Barlow — um dos fundadores da Electronic Frontier Foundation — espelhava a utopia dos pioneiros da Internet e o imaginário de uma globalização libertária. O próprio termo ciberespaço, que é fluído e sem contornos precisos, não foi concebido com um conceito científico. O seu uso emergiu a partir de uma utópica/distópica obra de ficção científica de William Gibson, Neuromancer, publicada 1984. (Ironicamente, coincidiu no ano da sua publicação com a distopia totalitária 1984 de George Orwell). Mas, para os pioneiros da Internet, o ciberespaço não era um mundo distópico, era antes um novo mundo, um mundo livre e imaterial aberto a todos num espírito de partilha e não lucrativo. Esse novo mundo livre escapava à interferência e controlo dos Estados e era, pela sua própria natureza, um terreno fora das lutas geopolíticas. Todavia, a evolução ocorrida nos último quarto de século foi radicalmente diferente. As disputas geopolíticas prolongam-se agora no ciberespaço, replicando aí ambições de poder, de influência e de soberania que são (quase) tão antigas quanto a própria humanidade.
2. Desde que foi criado por Rudolf Kjellén na transição do século XIX para o século XX, o termo geopolítica remete para as relações entre o espaço geográfico e a política dos Estados. Centra-se nas disputas de poder e nos conflitos que decorrem à volta dessas duas dimensões (a geográfica e a política). Pelo próprio contexto histórico onde surgiu, europeu e nacionalista, a geopolítica designava problemas bem conhecidos. Lutas de soberania e de poder entre Estados-nação envolvendo território, população e recursos. Agora, com o ciberespaço, essas disputas projectam-se num terreno imaterial que não existia nos tempos de Rudolf Kjellén. Abrem também a possibilidade do uso de destrutivas armas de ciberguerra, pela crescente dependência das sociedades da Internet e tecnologias digitais. Mas o ciberespaço é uma criação humana que não existe sem uma estrutura física — desde logo de uma rede mundial de cabos terrestres e marítimos — que permitem comunicações globais. Para além da estrutura física que o suporta, as regras internacionais a aplicar a esse espaço imaterial, que nos habituámos a pensar como global, são hoje objecto de dura luta política. Essa luta tem dois polos maiores em confronto — os EUA e a China —, sendo já vista por muitos, com maior ou menor rigor conceptual, como uma segunda Guerra Fria.
3. A União Internacional das Telecomunicações (UIT) está agora no centro das disputas sobre o futuro da Internet. É uma antiga organização intergovernamental surgida durante o século XIX, em 1865, originalmente para criar regulações internacionais para a tecnologia de ponta da época — o telégrafo. Na sua origem evidencia bem a influência e domínio europeu do mundo. Os vinte Estados fundadores eram todos europeus ou, pelo menos, com territórios na Europa, como o antigo Império Otomano. Após a II Guerra Mundial e a criação da Organização das Nações Unidas, a UIT tornou-se, em 1947, uma agência especializada das Nações Unidas. A sua missão fundamental é a mesma do passado, mas o domínio euro-ocidental do mundo eclipsou-se numa organização com 193 membros. É no âmbito da UIT que se estabelecem padrões globais (standards) para as tecnologias de comunicação. Nesta altura estão em curso os trabalhos para uma regulação futura da Internet. A China tem estado particularmente activa nessa matéria. A posição chinesa vai no sentido de criar uma nova versão dos padrões TCP/IP (Endereço de Protocolo da Internet) para acomodar futuras tecnologias e tem na Huawei um suporte tecnológico crucial. Aponta para um modelo de governação que centraliza a Internet colocando-a sob controlo estatal. Inclui, entre outras modificações, um “protocolo de desligamento”, o qual permitirá enquadrar internacionalmente os cortes das partes da Internet que os Estados considerem inadequadas para a sua soberania interna.
4. Muitos europeus e ocidentais ainda não perceberem o mundo que se está a desenhar. Mantêm quadros mentais do passado onde o universalismo e o globalismo eram, quase sempre, sinónimos de mais influência europeia, mais tarde norte-americana. No seu pico de poder, para além dos males da colonização e do imperialismo, o mundo euro-ocidental criou também o Direito Internacional, o Direito Internacional Humanitário, as organizações internacionais globais (Sociedade das Nações em 1919, Organização das Nações Unidas em 1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nas décadas finais do século XX, a Internet/ciberespaço e a globalização foram a última grande criação desse mundo euro-ocidental, especialmente dos EUA. Mas a Internet que projecta uma supremacia norte-americana e ocidental — e convive com valores políticos liberais-democráticos — sofre agora uma forte contestação internacional, como mostram as negociações no âmbito da UIT. Nos seus traços fundamentais, o processo replica as tendências geopolíticas gerais de perda de influência do mundo liberal-democrático e de criação de um mundo multipolar mais autoritário e mais soberanista. Projecta a crescente influência da China nas organizações globais, da Organização Mundial do Comércio à Organização Mundial da Saúde. Assim, com o mundo euro-ocidental incapaz de criar novos padrões internacionais-globais e normas como no passado, o resultado futuro mais provável é uma splinternet, ou seja, uma Internet fragmentada por lógicas de soberania. É um reflexo da influência crescente do “consenso de Pequim”, uma convergência de interesses entre os Estados mais soberanistas e/ou autoritários contra a ordem liberal internacional ocidental. O excepcionalismo do ciberespaço hoje é uma evidente utopia. A sua geopolítica é a mesma do mundo em transformação do século XXI.
Nota: texto baseado nas ideias apresentadas na C-Days 2020, organizada pelo Centro Nacional de Cibersegurança (CNCS) no âmbito da temática Riscos e Conflitos/Painel Geopolítica do Ciberespaço