Há medidas que são uma declaração de desistência
Estas mulheres, que têm um nome e tinham uma vida, receberam como resposta à sua queixa e ao seu pedido de ajuda uma nova agressão, legítima e institucional: a agressão de uma justiça indiferente, ou incompetente, ou incapaz, mas, em qualquer dos casos, cúmplice. O sangue destas mulheres escorre, também, pelas paredes desse edifício a que chamamos Estado.
Escrevo este texto a 27 de Novembro e, até hoje, trinta e duas (32!) mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica. A maioria destes homicídios decorreu em relações de intimidade. Na maioria destes homicídios havia episódios relatados de violência prévia.
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Escrevo este texto a 27 de Novembro e, até hoje, trinta e duas (32!) mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica. A maioria destes homicídios decorreu em relações de intimidade. Na maioria destes homicídios havia episódios relatados de violência prévia.
Falta um pouco mais de um mês para que termine o ano – um ano atípico em quase tudo, mas não nas negras cifras desta violência, que essas continuam elevadas, vergonhosamente elevadas.
E este mês que falta é, tipicamente, um mês em que os conflitos familiares e da intimidade tendem a avolumar-se, em ligação com a maior proximidade entre as pessoas e a tensão própria dos tempos festivos.
Ora qualquer destes “tradicionais” factores de conflito, sempre associados às quadras festivas, está, este ano, potenciado pelo recolhimento domiciliário e pela incerteza, quer quanto ao futuro imediato, quer quanto a esse futuro, mais longínquo, a que chamamos vida. É de temer, por isso, que mais vítimas se somem a esta estatística de morte, até que o ano finde.
Estas mulheres, que morreram às mãos de maridos, companheiros, namorados, ex-maridos, ex-companheiros ou ex-namorados, sabiam que o perigo as rondava, que a morte as espreitava numa esquina, à porta do trabalho, ou dentro da casa a que gostavam de chamar lar.
E por saberem que o perigo as rondava e a morte as espreitava, muitas destas mulheres queixaram-se e pediram ajuda. E, ao fazê-lo, expuseram-se na sua intimidade e na sua vulnerabilidade, confiantes em que o Estado lhes garantiria protecção: a protecção da justiça. Confiantes em que o Estado seria capaz de lhes aliviar o medo e de lhes devolver dignidade.
Estas mulheres que, e é bom que o recordemos, têm um nome e tinham uma vida, receberam como resposta à sua queixa e ao seu pedido de ajuda uma nova agressão, legítima e institucional: a agressão de uma justiça indiferente, ou incompetente, ou incapaz, mas, em qualquer dos casos, cúmplice. O sangue destas mulheres escorre, também, pelas paredes desse edifício a que chamamos Estado.
Escorre por essas paredes cujas decisões facilitam que o agressor continue em liberdade, acossando a sua presa, torturando-a com o medo e engendrando o momento ideal para consumar o ataque derradeiro.
Escorre pelas paredes de um Estado que força à escolha entre a clandestinidade de uma casa de abrigo (para as vítimas e os filhos) ou a permanência, em perigo, no seu quotidiano conhecido e que apenas queriam “normal”.
É por isso que considero chocante que num Decreto-Lei (n.º 101/2020) se refira a promoção das “diligências necessárias tendo em vista a criação de uma licença especial de reestruturação familiar, aplicável a vítimas de violência doméstica que sejam obrigadas a abandonar o seu lar”.
E todos sabemos que sim. Que há vítimas que são obrigadas a abandonar o seu lar. Que o fazem em nome da sua vida e da vida dos seus filhos. Que o fazem deixando tudo para trás: os amigos, os vizinhos, as roupas, e todos esses pequenos nadas, que compõem o tudo de uma vida. Que o fazem enquanto o agressor permanece em casa, destilando o seu ciúme e o seu ódio, mantendo as suas rotinas e a “normalidade” da sua vida.
São obrigadas a fazê-lo, é certo. Obrigadas a abandonar um lar, sendo que um lar é bem mais do que um espaço entre paredes.
Obrigadas, sobretudo, por um Estado que agora legisla o direito destas vítimas a uma licença laboral para reestruturação familiar, por um período máximo de dez dias (e como se reestruturam os despojos de uma vida em dez dias?) e ao recebimento de um subsídio correspondente a essa licença.
Argumentarão, talvez, que é uma ajuda. A mim parece-me uma medida paliativa e assistencialista, com a qual, mais uma vez, se escamoteia a verdadeira essência do problema, ou seja, aquela relativamente à qual é necessária a mudança: é que nenhuma vítima (de nenhum crime) deveria ser obrigada a abandonar o seu lar. Quem não pode ter lugar nesse lar é o agressor.
Mais do que uma medida de resistência, esta parece-me uma medida de desistência. Como mulher, como cidadã e como filha de uma antiga situação de violência doméstica, isto parece-me pouco. Demasiada e indignamente pouco.