Cientistas combatem covid-19 usando as suas bazucas, o Governo agradece com pistolas de água
Mais uma vez, o Governo não traduziu o reconhecimento num financiamento digno da ciência, recusando financiamento a candidaturas consideradas de elevadíssimo mérito pelos painéis avaliadores.
Nos últimos dias os investigadores insurgiram-se contra o reduzido número de contratos e projetos aprovados na ciência, contrastando com as palavras de contínuo e crescente investimento por parte do primeiro-ministro António Costa e seu ministro Manuel Heitor que tutela a pasta da Ciência. Este é um resumo prático para a população não cientista perceber o drama que se vive na ciência em Portugal, neste ano em que a ciência tanto deu ao país.
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Nos últimos dias os investigadores insurgiram-se contra o reduzido número de contratos e projetos aprovados na ciência, contrastando com as palavras de contínuo e crescente investimento por parte do primeiro-ministro António Costa e seu ministro Manuel Heitor que tutela a pasta da Ciência. Este é um resumo prático para a população não cientista perceber o drama que se vive na ciência em Portugal, neste ano em que a ciência tanto deu ao país.
Neste ano atípico, os investigadores cedo perceberam que deveriam contribuir para ajudar o país a lidar com a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2. Num movimento voluntário sem precedentes, os investigadores portugueses aplicaram o “desenrascanço” típico português para desenvolver testes PCR para deteção do vírus usando reagentes made in Portugal (ultrapassando assim a escassez dos mesmos nos fornecedores estrangeiros) e colocando Portugal entre os países que melhor lidaram com a pandemia na primeira onda. Os investigadores geraram modelos epidemiológicos para auxiliar as decisões das autoridades de saúde, permitindo ao país dominar essa primeira onda com eficácia e semanas antes de outros países. Com esta estratégia evitaram-se centenas de mortes e impediu-se o colapso do Sistema Nacional de Saúde.
Por outro lado, os investigadores alertaram para o impacto silencioso da pandemia na saúde mental e para o impacto do isolamento social em adultos e idosos. Entre muitas outras iniciativas, os investigadores colocaram-se ao serviço do país numa atitude de voluntariado, muitas vezes com enorme esforço pessoal. Fizeram-no também arriscando a sua sorte ao manipular amostras com um vírus ainda de características desconhecidas nomeadamente no que diz respeito à sua contagiosidade e à severidade da doença.
Desde cedo o Governo demonstrou não (re)conhecer a capacidade da ciência em Portugal. Por exemplo, ao não recrutar toda a capacidade instalada de biologia molecular nos centros de investigação públicos financiados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) que, utilizando os termocicladores existentes para realizar os muito necessários PCR, poderiam multiplicar a capacidade de testagem do país. Ou mesmo quando os investigadores imploraram por dados sobre a situação epidemiológica do país, por forma a poder estudar o fenómeno da pandemia. No calor da primeira vaga o Governo colmatou a necessidade de alimentar o sistema científico na resposta à pandemia abrindo concursos pontuais para atribuição de verbas a projetos ou para contratar bolseiros de doutoramento, mas o reconhecimento do Governo ficou-se por aí.
Desde então o país passou a escutar cientistas diariamente nos telejornais, em programas de comentário e nas redes sociais. O país ouviu e viu profissionais de saúde fundamentar as suas decisões nas descobertas nacionais e internacionais partilhadas gratuitamente pelas revistas de especialidade. O país apercebeu-se da importância do trabalho que os cientistas fazem dia-a-dia, infelizmente pela pior razão: para melhor entender esta pandemia e salvar o máximo de vidas possível. Ao mesmo tempo o Governo percebeu que os portugueses poderiam voltar aos seus trabalhos e as empresas poderiam fazer retomar a economia quando a ciência assegurou que a utilização generalizada de máscaras e higienização frequente das mãos e espaços era suficiente para conter a propagação do vírus.
Contudo, chegamos a este momento em que são conhecidos os resultados de concursos nacionais para a atribuição de contratos e projetos de investigação a investigadores de todas as áreas científicas. E o que se observou é que, mais uma vez, o Governo não traduziu este reconhecimento num financiamento digno da ciência, recusando financiamento a candidaturas consideradas de elevadíssimo mérito pelos painéis avaliadores.
A parca atribuição de verbas fez com que tenham sido recusados contratos de trabalho por seis anos aos 144 investigadores cujo mérito do seu currículo e da sua proposta científica foram avaliados com 9,0 ou mais (em 10,0), o equivalente a um aluno que obteve mais de 90% num teste. Este corte cego atinge, entre outros, os líderes de grupos de investigação vencedores de financiamentos internacionais na ordem de centenas de milhares de euros. Atinge também investigadores reconhecidos mundialmente com muitos anos de provas dadas e jovens investigadores que terminaram os seus doutoramentos com destacado mérito.
Este parco investimento fez com que, na candidatura a projetos de investigação, os investigadores com avaliações excecionais de 8,6 em 9,0 (96%) vissem o financiamento do seu projeto ser recusado, por exemplo no painel de neurociências. Agora, o Governo abriu um novo concurso de projetos, mantendo o limitado pacote financeiro do concurso anterior, mas permitindo que os investigadores se candidatem a projetos exploratórios de 50.000 euros, ou seja, 20% do valor de um projeto regular (logicamente mais limitados do ponto de vista experimental e de recursos humanos). Desta forma, consegue aprovar mais projetos de forma artificial, mantendo o sistema científico subfinanciado. Fica claro que o Governo quer mostrar que investe na ciência abrindo concursos regulares, mas na realidade dota essas iniciativas com verbas muito insuficientes, deixando a ciência em Portugal definhar num misto de frustração e engano.
Estes concursos em todas as áreas científicas destinam-se segundo a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) à “promoção e reforço de competências das instituições científicas e tecnológicas através da participação das suas equipas em projetos de Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico (IC&DT)” e são a pedra basilar de qualquer sistema científico de um país pois permitem aos seus investigadores explorarem as suas melhores ideias para produzir conhecimento e valor. É este financiamento fundamental que permite aos investigadores sobreviver no dia-a-dia para poderem gerar conhecimento com a estabilidade necessária para transformá-lo em valor, seja ele uma patente, um financiamento internacional, um livro, ou uma corrente filosófica.
A par do parco financiamento destes concursos, o Governo anunciou recentemente que irá reduzir o aumento do investimento na FCT no próximo Orçamento do Estado para 4%, quando ainda em 2019 o primeiro-ministro anunciava com voz grossa um aumento anual de 7% com o objetivo de atingir 3% do PIB em 2030, para convergir para a média europeia. Certamente que as consequências económicas da pandemia poderão colocar este investimento em risco, mas sabendo que o próximo ano trará a chamada “bazuca financeira” da Comissão Europeia, preocupa-nos a intenção de manter a área da ciência subfinanciada gerando desmotivação, desemprego e emigração.
Ao recusar financiamento aos investigadores com mérito reconhecido nas mais vastas áreas científicas (Ciências da Vida e Saúde, Ciências Naturais e do Ambiente, Ciências Exatas, Engenharias, Ciências Sociais, Artes e Humanidades), o Governo está a comprometer o futuro do país nessas áreas ao recusar utilizar os nossos cérebros para construir um futuro melhor para os nossos filhos e netos.
Aqui ao lado, a experiência trágica da pandemia levou o Governo espanhol a apresentar em julho um Plano de Ação para a Ciência e Inovação onde prevê um aumento de 60% do investimento já em 2021, após anos de costas voltadas para a ciência. Este plano prevê um investimento sem precedentes na investigação e inovação em saúde, na transformação do sistema científico e atração de investigadores de mérito e na potenciação a investigação e desenvolvimento no tecido empresarial.
Ao Governo português exige-se pelo menos a mesma reação. Já o exigimos no passado aos deputados da Comissão Parlamentar para a Educação, Ciência, Juventude e Desporto, aparentemente sem qualquer efeito prático. Sugerimos que estes concursos fossem dotados de uma verba suficiente para a aprovação de cerca de 15% nos concursos gerais de projetos e contratos, atingindo assim as taxas mínimas de aprovação noutros países europeus. Logicamente, este limiar mínimo de estabilidade do sistema seria acompanhado de critérios mais específicos para acesso aos concursos (por exemplo, limitação de candidaturas para investigadores com contratos/projetos atribuídos recentemente) já anteriormente sugeridos ao Governo pelos investigadores.
Os investigadores deste país arregaçaram as mangas para gerar conhecimento e ajudar Portugal. Não conseguiremos fazer muito mais com simples pistolas de água. Dêem-nos a bazuca para a ciência poder também alavancar o país para fora desta crise.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico