Há 102 anos, a pneumónica matou mais de 55 mil pessoas no Algarve

Só no concelho de Loulé chegaram a morrer 70 pessoas por dia. Às juntas de freguesia e seus regedores, a câmara “proibiu o toque dos sinos nos cortejos fúnebres” para não agravar o estado de pânico

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O Algarve, se a covid-19 trilhasse os caminhos da “gripe espanhola – que matou milhões de pessoas em todo o mundo - estaria na curva descendente da pandemia. A pneumónica (“gripe espanhola”) de 1918 atingiu a pico no mês de Novembro. No princípio do ano seguinte, dizem os historiadores, “já se respirava de alívio”. O regresso a esse ambiente de chumbo pode ser revisitado numa exposição, patente na Casa Memória Duarte Pacheco, em Loulé - um dos concelhos algarvios mais atingidos pelo surto gripal.

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O Algarve, se a covid-19 trilhasse os caminhos da “gripe espanhola – que matou milhões de pessoas em todo o mundo - estaria na curva descendente da pandemia. A pneumónica (“gripe espanhola”) de 1918 atingiu a pico no mês de Novembro. No princípio do ano seguinte, dizem os historiadores, “já se respirava de alívio”. O regresso a esse ambiente de chumbo pode ser revisitado numa exposição, patente na Casa Memória Duarte Pacheco, em Loulé - um dos concelhos algarvios mais atingidos pelo surto gripal.

O subdelegado de saúde, Bernardo Lopes, no balanço final do combate à doença, escreveu que teriam falecido no concelho, “uma média de 70 pessoas por dia”. Segundo as estatísticas oficiais, em 1918, morreram em toda a região 55.780 pessoas, cerca de 22% do total de óbitos registados no país. O município louletano, à semelhança das outras autarquias, esteve na linha da frente do combate ao surto. Primeira medida: no início de Outubro, manda encerrar todas as escolas do concelho. Segunda acção: no dia 27 do mesmo mês, o vice-presidente da câmara, Francisco de Sousa Faísca pede apoio ao governo civil para comprar sacas de açúcar para as farmácias produzirem medicamentos para os “doentes mais necessitados e em perigo de vida”, mandando preparar, ao mesmo tempo, um “hospital epidémico” de retaguarda, nos arredores da cidade.

Bernardo Lopes, antecipando o colapso dos serviços de saúde, envia um telegrama (4/10/1918) ao Delegado de Saúde Pública de Faro, Francisco Vaz, informando que observou um doente com “broncopneumonia gripal em estado grave”, queixando-se que não tinha meios para o socorrer “Este doente tem estado oito dias sem assistência média por sua culpa”, acusou. Por sua vez, o autarca, uma semana depois, solicita ao Governo Civil, uma “força comando [polícia] para assegurar a ordem pública”. A situação da epidemia, justifica, “propaga-se no concelho de maneira assustadora”, e a fome faz aumentar a criminalidade. A todas as freguesias e seus regedores, ordena: “Devem proibir o toque dos sinos nos cortejos fúnebres” para não criar mais pânico.

Nos restantes concelhos, escreveu Paulo Girão, numa tese de mestrado sobre a Pneumónica no Algarve, publicada em 2003, a situação é semelhante ao que se passa em Loulé. Domina um “sentimento de impotência”, e à falta de resposta da administração central, as autarquias tomam a dianteira. Em Faro, o antigo liceu nacional João de Deus vai servir de hospital para tratar os doentes; em Loulé, a câmara requisita o Palácio da Fonte da Pipa como espaço alternativo ao hospital Nossa Senhora dos Pobres.

“A pneumónica foi apenas um caso de saúde pública, entre muitos outros”, destaca Luísa Martins, a investigadora da área da história, que assina a exposição, juntamente com o colega João Sabóia, ex-director do arquivo distrital de Faro. Durante a primeira metade do século XX, descrevem, a juntar às más condições sanitárias e higiénicas, o Algarve padecia de “deficientes condições hospitalares”. Por sua vez, Paulo Girão assinala ainda outro factor complementar: “Problemas burocráticos e incompetência de alguns serviços”. A comunicação à Direcção-Geral de Saúde (DGS) do número de mortos e infectados fazia-se por telégrafo. Porém, tal como hoje sucede na era digital, as contas para “achatar a curva” não batiam certo.

O investigador e higienista Ricardo Jorge fora nomeado (22/09/1918) Comissário Geral do Governo para o combate ao novo surto gripal. Desde o início, aos delegados de saúde exigiu que “diariamente” informassem a Direcção-Geral de Saúde (DGS) do estado de evolução da doença. Em Loulé, o subdelegado de saúde, Bernardo Lopes, lamenta, pedindo que lhe seja requisitado um carro para se poder deslocar ao interior do concelho, porque lhe chegavam notícias da população “em desespero” por falta de assistência. A câmara reclama “pelo menos mais um médico”. A situação agrava-se. Decorridas duas semanas, o regedor substituto de Quarteira, José Oliveira, solicita a mobilização de “carros para conduzir cadáveres”. O coveiro de Loulé, em resposta à sobrecarga de trabalho, recebe “provisoriamente” um aumento salarial. A actual ministra Marta Temido prometeu um bónus apenas aos médicos e enfermeiros que trabalharam na primeira vaga da covid-19

De Espanha, veio a gripe

Segundo Paulo Girão, a doença “invadiu o norte de Portugal no final de Agosto de 1918. O Algarve foi uma das últimas regiões a ser atingidas. A primeira vaga gripal, lê-se, “entrou pela fronteira alentejana trazida de Espanha por trabalhadores agrícolas portugueses em finais de Maio de 1918”. No mesmo sentido, João Sabóia e Luísa Martins, no arquivo histórico de Loulé, detectaram a primeira referência à “gripe espanhola” no concelho a 25 de Maio de 1918.

O pico deu-se entre meados de Outubro e o mês seguinte. O primeiro óbito registado, “um louletano de Querença que tinha trabalhado em Alcácer do Sal”, ocorre no dia 9 de Outubro. Os últimos falecidos dão-se no dia 22 de Novembro. “Mas só em Janeiro de 1919 é que se começou a respirar”, sublinha Luísa Martins, destacando, no combate à doença, o papel de três médicos  Geraldino Brites, Everardo Pidwell e José Bernardo Lopes. Os três clínicos, contratados pela câmara, estavam obrigados a “curar os pobres, vacinar e revacinar, sem distinção de classes”.

Porém, a população menos informada “só optava por procurar o médico em situação de desespero”, refere João Sabóia, lembrando que, entre os mais requisitadoss, figuravam os curandeiros e curandeiras que recorriam a benzeduras, orações e mezinhas. Por isso, a exposição sobre a “Saúde de uma Comunidade” na primeira metade do século XX mostra, também, o lado da descrença na ciência. A par das imagens e documentos relacionados com a pneumónica, destaca-se ainda uma mostra sobre a tuberculose e as doenças sexualmente transmissíveis (sífilis, por exemplo). As prostitutas (meretrizes), criadas, trabalhadoras e domésticas, são as vítimas predominantes das doenças venéreas. “Os homens parecem que não têm doenças sexualmente transmissíveis”, ironiza Luísa Martins, lembrando que os “senhores” ficavam de fora da lista oficial dos doentes tratados com a moléstia.