7. O Estado: um problema de escala ou de estrutura?
O problema não reside em mais ou menos Estado, mas num outro modelo de Estado. Em Portugal, qualquer tentativa de reforma séria arrisca-se a não sair do papel.
O sociólogo americano Daniel Bell escreveu em 1988, no The Washington Post, um artigo que pretendia ser um exercício de prospetiva para o que poderia ser o Mundo em 2013 (Previewing Planet Earth in 2013) e em que, entre outras ideias, defendia que o modelo de Estado-nação, prevalecente à escala global, sofria de uma desadequação de escala: estava a tornar-se demasiado pequeno para os grandes problemas da Humanidade e demasiado grande para os pequenos problemas da vida dos cidadãos e das comunidades locais.
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O sociólogo americano Daniel Bell escreveu em 1988, no The Washington Post, um artigo que pretendia ser um exercício de prospetiva para o que poderia ser o Mundo em 2013 (Previewing Planet Earth in 2013) e em que, entre outras ideias, defendia que o modelo de Estado-nação, prevalecente à escala global, sofria de uma desadequação de escala: estava a tornar-se demasiado pequeno para os grandes problemas da Humanidade e demasiado grande para os pequenos problemas da vida dos cidadãos e das comunidades locais.
Se à data da publicação a análise era pertinente, passados 32 anos, não só a antevisão se confirma como a dimensão do problema se tornou maior.
Os Estados enfrentam dificuldades crescentes no controlo dos fluxos financeiros, na atenuação das causas e consequências das alterações climáticas, no tráfico de estupefacientes, armas e seres humanos, nos fluxos migratórios e no controlo de fronteiras, nas ameaças à segurança interna quer pelos atentados terroristas, quer através de ataques informáticos a sistemas estratégicos. Estas e outras ameaças dificilmente se reduzirão e a única solução reside na cooperação internacional e na ação de organizações transnacionais. Cada Estado, por maior e mais poderoso que seja, não consegue resolver, por si só, aqueles desafios.
Por outro lado, o Estado-nação tornou-se excessivamente grande e complexo para atender aos problemas do cidadão, da vida local, a uma escala mais micro. É um Estado cada vez mais afastado das pessoas e das suas comunidades. A resposta a este afastamento foi a descentralização e a generalização do princípio da subsidiariedade.
Era suposto que este duplo movimento de transnacionalização e de descentralização pudesse traduzir-se numa readequação da escala. Porém, as tendências de redução da despesa e dívida públicas no produto nacional não se verificaram e em muitos casos assistiu-se mesmo a um reforço. Estamos perante um paradoxo, o que nos leva a pensar que o problema não estará na escala, mas estará muito provavelmente na sua estrutura, ou seja, no complexo de relações de poder e nas suas funções e competências. Por outras palavras, o problema não reside em mais ou menos Estado, mas num outro modelo de Estado.
O Estado moderno começou a construir os seus alicerces no ocaso da Idade Média, consolidou-os em torno das funções de soberania com a Paz de Vestefália e relegitimou o seu monopólio da ação coerciva com a estruturação do Estado-nação, no século XIX. No século seguinte, redimensionou-se em torno do conceito de Estado social para se transformar no Estado regulador, nas últimas décadas.
No longo prazo, o Estado nunca parou de se reinventar, mas sempre o fez pelo alargamento dos seus poderes e das suas funções. Apesar das várias tentativas de desregulação, privatização e liberalização, nunca parou de crescer e de aumentar a sua presença e interferência nos mais variados domínios da sociedade.
O mais recente modelo de Estado regulador promoveu a proliferação de agências independentes orientadas para obter ganhos de eficiência e para corrigir as falhas do mercado, nomeadamente os monopólios públicos, a informação imperfeita e as externalidades negativas. Porém, o que pretendia ser um ganho de expertise, profissionalismo e autonomia não evitou a captura dos reguladores pelos regulados e decisores políticos, nem algum deficit de transparência e de eficácia. Criou, entretanto, uma nova burocracia de orientação mais tecnocrática e desqualificou a velha burocracia administrativa que se viu esvaziada dos seus poderes.
Paralelamente, e com especial expressão nos países europeus, as funções de soberania (defesa, segurança e justiça, especialmente) foram sacrificadas ao incontrolável crescimento do Estado social (educação, saúde, segurança e proteção social).
A União Europeia e as suas instituições têm vindo a representar uma oportunidade única de reconfiguração dos Estados nacionais que a integram. Não obstante a federalização de algumas funções de soberania, nem por isso esses Estados membros desenvolveram modelos alternativos de organização do Estado e das administrações públicas. A redução limitada do peso das suas despesas no produto, para além de conjuntural, deve-se muito mais ao controlo dos deficits do que a qualquer ganho de eficiência.
O processo de integração europeia continua refém da tensão entre objetivos federalistas e resistências nacionalistas. O que não deixa de ser paradoxal quando constatamos um progressivo isomorfismo e desnacionalização das políticas públicas de cada Estado, sustentados na influência crescente das organizações transnacionais (OCDE, FMI, etc.).
O caso português continua a ser marcado por dois legados do salazarismo que o regime democrático não destruiu, pelo contrário, terá mesmo reforçado: centralismo e corporativismo.
Portugal está entre os cinco países europeus mais centralistas. Ainda que seja comum o facto de serem cinco pequenos países, justificando assim a centralidade da decisão e da gestão dos recursos públicos, o caso português evidencia-se pela diversidade do seu território, mas simultaneamente pelo facto de ser uma das mais antigas nações independentes. A dimensão reduzida e a forte identidade poderão favorecer as soluções centralizadas, mas a diversidade geográfica e algum “paroquialismo cultural” facilitariam uma maior proximidade potenciada pela descentralização.
O segundo legado é bem mais difícil de eliminar. A desvalorização crescente das funções tradicionais de soberania permitiu a emergência de interesses corporativos sem qualquer legitimidade democrática. Sectores como a justiça subtraem-se a qualquer escrutínio público e funcionam como contrapoderes dos poderes legítimos. Outros, como as forças de segurança, são capturados por organizações sindicais.
Como o sistema político não soube qualificar-se e reforçar a autoridade que lhe advém de uma legitimidade cada vez mais contestada, estamos perante uma crise da autoridade pública e um Estado disfuncionalizado. Qualquer tentativa de reforma séria arrisca-se a não sair do papel.
Sétimo de uma série de dez textos de David Justino que publicaremos semanalmente, sempre às quintas-feiras, sobre os desafios que enfrentamos em várias áreas, em Portugal e no Mundo. Próximo artigo: “A deriva iliberal e autoritária”
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico