A saúde: de direito a mercadoria ou de mercadoria a direito?
Se o Estado, não investindo suficientemente no Serviço Nacional de Saúde, não garantir plena e adequadamente a satisfação das necessidades de cuidados dos cidadãos, obrigando-os a recorrer à saúde privada, objectivamente transforma a saúde de direito em mercadoria.
“A saúde é um direito.” É este o título de um artigo de opinião colectiva publicado no jornal PÚBLICO [1].
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“A saúde é um direito.” É este o título de um artigo de opinião colectiva publicado no jornal PÚBLICO [1].
Os subscritores e as subscritoras desse artigo são, pelo menos na sua maioria, pessoas com especiais qualificações (profissionais, académicas ou mesmo científicas) no domínio da saúde. Portanto, com acrescida autoridade para sustentarem o que nesse artigo escrevem.
Mas, para um cidadão comum que nenhuma especial qualificação tem no domínio da saúde, que reflexão e tranquilidade (ou inquietação) pode suscitar tal frase: “a saúde é um direito”?
Não há nada tão eminentemente (ainda que não exclusivamente) social (nas suas causas e nos seus efeitos) como a saúde. Tal como a sua negação, a doença.
Daí que, independentemente da sua expressão individual, cuidar ou não da saúde não implica apenas uma responsabilidade pessoal mas, também – e a situação de pandemia que atravessamos evidencia-o o mais que qualquer outro exemplo –, responsabilidade social.
Por tanto determinar a sociedade e ser determinada por esta, a saúde deve, então, ser um direito de todos, um direito “geral e universal”.
Mas, numa “economia de mercado”, em que há quem entenda (e, coerentemente, assim aja) que deve, desregulada, poder tomar o “freio nos dentes”, desenvolver livremente todas as iniciativas, não espantará se resvalarmos para uma sociedade de mercado em que seja natural a saúde ser considerada uma mercadoria.
Vários exemplos temos disso, sendo deles o mais significativo, por perversamente paradoxal, o dos EUA que, sendo a “America First” (Donald Trump), a “nação mais rica e poderosa do mundo” (Barack Obama), perante a doença, mantém como os mais frágeis do mundo os cidadãos que não sejam ricos para comprar o acesso aos cuidados de saúde.
A ser reconhecida como um direito, ter acesso a cuidados de saúde depende de a todos ser garantida, um poder, responsabilidade e interesse (público, político) que é, deve ser, do Estado.
A ser entendida como mercadoria, ter acesso aos cuidados de saúde depende de, pelos que o possam economicamente, ser comprada a quem a forneça, um poder, responsabilidade e interesse (privado, mercantil) que é das empresas privadas de saúde.
Ambas estas responsabilidades, a do Estado e a das empresas privadas de saúde, por eminentemente social ser a saúde (quer a saúde pública, quer a saúde individual), são, objectivamente, responsabilidades sociais.
Mas as regras e as referências que as enquadram são notoriamente diferentes.
No primeiro caso, da saúde reconhecida como um direito, sendo do Estado a responsabilidade de garantir esse direito, tal rege-se, no essencial, pela referência fundamental de qualquer Estado, mormente de um Estado democrático: a Constituição. Em Portugal, especificamente, por esta referência de fundo: “Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e proteger.” [2]
No segundo caso, da saúde entendida como mercadoria, sendo das empresas privadas de saúde a responsabilidade de a fornecer, é natural que, em coerência com o facto de “melhor negócio que a saúde só o das armas” [3], se reja por uma clássica referência que é cada vez mais lema das “escolas de negócio” (business schools) classificadas nos top ten dos respectivos rankings do Finantial Times: “A responsabilidade social das empresas é obter lucros.” [4]
Algo é certo num contexto, como o actual, de crescente necessidade (e logo de procura) de cuidados de saúde por parte dos cidadãos: se o Estado, não investindo suficientemente no Serviço Nacional de Saúde, não garantir plena e adequadamente a satisfação das necessidades de cuidados dos cidadãos, obrigando-os, de facto, a recorrer à saúde privada, objectivamente, transforma(-lhes) a saúde de direito em mercadoria. A não ser que…
A não ser que, supletivamente, requisitando ou contratualizando legal e justamente (mas, de qualquer forma, “nos termos e condições definidos pelas autoridades públicas [5]”) às empresas privadas de saúde o fornecimento (prestação) de cuidados de saúde aos cidadãos. Ou seja, para dar a resposta de cuidados de saúde circunstancialmente necessária (premente) e devida aos cidadãos, poder-se-á dizer, transformando a saúde de mercadoria em direito.
A saúde: de direito a mercadoria ou de mercadoria a direito?
[1] “A saúde é um direito”, PÚBLICO, 07/11/2020
[2] Constituição da República Portuguesa – N.º 1 do Art.º 64.º
[3] Dra. Isabel Vaz, então vice-presidente do Grupo Luz Saúde, RTP1, 18/04/2007
[4] Milton Friedman (EUA, 1912-2006), Prémio Nobel de Ciências Económicas em 1976, citação a partir de New York Times Magazine, 13/09/1970
[5] “As vozes do dono”, Francisco Ramos, ex-secretário de Estado da Saúde, PÚBLICO, 01/11/2020