Como seria (ou será) uma cidade feita de trocas comerciais no tapete de entrada?

Caro consumidor, que cidade quer encontrar no final desta pandemia, depois de ter decidido – talvez irreflectidamente – eleger como espaço de trocas comerciais o tapete de entrada de sua casa?

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Diogo Ventura

Entre um especulativo exercício académico de urbanismo, um sobressaltado registo ficcional ou uma visceral chamada de alarme de um sector económico em agonia, a pergunta que forma o título deste artigo há-de encontrar o seu caminho, a sua utilidade – tão útil quanto se quer o comércio, tão prático como se quer o comércio. Claro que para a pergunta ficar mais decidida na sua retórica, deveríamos juntar uma geografia, a velha Europa, um tempo, o pós-pandemia, e um destinatário, o consumidor. Faz-se então uma primeira reformulação da pergunta: como ficarão, caro consumidor, as cidades da Europa, no pós-pandemia, depois da inevitável transformação digital do comércio?

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Entre um especulativo exercício académico de urbanismo, um sobressaltado registo ficcional ou uma visceral chamada de alarme de um sector económico em agonia, a pergunta que forma o título deste artigo há-de encontrar o seu caminho, a sua utilidade – tão útil quanto se quer o comércio, tão prático como se quer o comércio. Claro que para a pergunta ficar mais decidida na sua retórica, deveríamos juntar uma geografia, a velha Europa, um tempo, o pós-pandemia, e um destinatário, o consumidor. Faz-se então uma primeira reformulação da pergunta: como ficarão, caro consumidor, as cidades da Europa, no pós-pandemia, depois da inevitável transformação digital do comércio?

A resposta transforma-se em cenário de inevitáveis estereótipos já observáveis nestas e noutras geografias (como noutros tempos, recentes): rés-do-chão desprogramados; motorizadas eléctricas e furgões de vários litros em abundância na rua para o transporte; armazéns robotizados onde o metro quadrado assoalhado seja mais barato; algum desemprego qualificado pingue-pongueado com um residual novo auto-emprego desumanizado; alguma insegurança nos passeios higiénicos  cada vez menos frequentes  em ruas, cada vez menos frequentadas; entre outras delícias de uma cruel narrativa.

A pandemia  culpa oficial de tudo o que acontece  trouxe já uma mudança equivalente a dez anos (diz-se hiperbolicamente) no que a trocas comerciais online diz respeito. Em dez meses, o consumidor precipitou-se a trocar a utilidade da compra em proximidade, pela conveniência da encomenda digital. Nada de culpabilização, apenas facto simples. E o comércio tradicional, local ou de rua – que a par de outros tem ganho fama na sua antiga-idade, deveria por esta hora, ou deveríamos  permitam-me agora uma mudança de narrador – estar mais que habituados a todas as transformações e evoluções inatas ao longo caminho. Mas não estamos. Deveríamos ter já assimilado na plenitude o online como nova forma e aceitar o metabolismo nativo da actividade comercial enquanto disciplina? Talvez, só que não devemos. Ou pior, não nos adaptámos e não nos queremos, militantemente, adaptar.

Nós aqui pelo comércio tradicional, local ou de rua – temos preferido sempre encarnar um último sopro de resistência contra a tão afamada adaptação na procura das oportunidades da mudança. E porquê? Talvez na resposta a outra pergunta se perceba o porquê. O que pode o comércio tradicional, local ou de rua? O que podemos nós, intemporais comerciantes ou os actualizados “curadores” de produtos mostrados em rés-do-chão de cidade, “criativos” com loja aberta, “fundadores” de novos projectos físicos? Que papel podemos nós desempenhar, para além de servir e de lucrar?

O que podemos? Podemos fazer cidade. Este jargão da arquitectura que é qualquer coisa como: contribuir para uma cidade vivida, sedutora, segura e prestável. Suportar uma cidade que sabe cuidar dos seus e receber os que vêm de fora. Realizar uma cidade que dá lugares de destaque nos rankings de publicações internacionais, que atrai investimento, que atrai moradores, que atrai vontades. Podemos ajudar a fazer cidade.

Está na hora de este nosso outro papel começar a ser reconhecido, precisamente no momento em que se começa a esfumar. A importância do comércio de tradicional, local ou de rua, vai muito além de trocas comerciais. Essas, as trocas, podem sempre acontecer no tapete de entrada de casa, servidas por um estafeta tão útil à nossa preguiça, quanto mal pago e sugeridas por um algoritmo que nos parece conhecer tão bem. Quanto à cidade? Para essa, precisamos mesmo de continuar por cá para a podermos cumprir.

Afinal a pergunta deste texto era outra. Caro consumidor, que cidade quer encontrar no final desta pandemia, depois de ter decidido – talvez irreflectidamente – eleger como espaço de trocas comerciais o tapete de entrada de sua casa? Temos uma missão para si: cuide de nós agora, para quando voltar o nosso tempo, podermos continuar a cuidar da cidade.