Dia 121: Ponham os avós a contarem histórias de vida
Estou segura de que a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro se ensina, e é uma chave mestra contra a intolerância, a discriminação e a marginalização.
Ana,
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Ana,
Hoje estava a ver um documentário sobre a imigração portuguesa dos anos 1950, e percebi que os avós têm uma outra utilidade na vida dos netos: aproximá-los do passado, provar-lhes que o mundo em que vivem hoje não nasceu ontem, e é resultado de um esforço colectivo gigantesco. Uma herança que têm a obrigação de merecer, e levar mais longe, como uma tocha olímpica.
É claro que a escola lhes ensina um rol de datas importantes, mas os avós transformam números e estatísticas em histórias vividas e reais. É diferente decorar para o teste a data da primeira vacina depois de ouvir a avó contar como a tia Felicidade morreu adolescente com sarampo, porque naquele tempo não havia vacina, ou tomar consciência de como são recentes os antibióticos, se souberem que um primo da avó morreu de anginas.
Como é outra coisa, estudar a geografia de África, ou a guerra colonial sabendo que o avô lá andou, ou perceber os grandes fluxos migratórios portugueses, depois de ouvir aos avós contarem como os seus pais passaram a salto a fronteira para Espanha, sem levarem nada com eles, e andaram semanas ao frio e à chuva para tentarem uma nova vida em França — que tornou possível construírem a casa onde hoje vivem.
Será que o neto adolescente desses avós, embora nascido e criado no século XXI, com um telemóvel inteligente na mão e absolutamente distante (felizmente) daquela realidade de pobreza e desespero, embarcará com a mesma facilidade no discurso xenófobo contra os migrantes, essa gente que arrisca morrer no mar para tentar uma vida melhor na Europa? Tenho a certeza que não.
Da mesma forma que não encarará os direitos das mulheres da mesma maneira se perceber que a sua própria avó não pôde estudar mais do que a 4.ª classe, porque era obrigada a ficar a tomar conta dos irmãos ou que quando casou teve de deixar a enfermagem porque — Ana, é verdade! — as enfermeiras não podiam ser casadas (não me perguntes porquê). E é impossível que um neto não fique com uma consciência mais viva de tudo isto, se ouvir pela voz da avó que as mulheres tinham de pedir autorização aos maridos para sair de Portugal, até Abril de 1974 (em que eu, Ana, tinha já 14 anos).
Estou segura de que a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro se ensina, e é uma chave mestra contra a intolerância, a discriminação e a marginalização. Quando há dias li nas redes sociais uma diatribe contra a “invasão” da Europa por gente de fora, dei por mim a recitar a lista dos povos de que é feito o povo português, como fazíamos no meu tempo na escola. Somos descendentes de estrimínios, sefes, cempsos, lusitanos, fenícios (hoje sírios, nota bem!), gregos, cartagineses, celtiberos, suevos, visigodos, romanos, judeus, mouros e africanos, já para não falar nos franceses e nos ingleses, por isso sinceramente com que descaramento é que chamamos a alguém de “estrangeiro” e reivindicamos uma “pureza de sangue” para os discriminar?
Pronto, resumindo e concluindo, a minha birra de hoje é esta: pais ponham os avós a contarem as histórias de vida aos netos, a falarem-lhes dos seus triunfos e derrotas, a mostrarem-lhes fotografias antigas, roupas antigas, malas de cartão... Até porque muitas vezes quando nos interessamos pelas suas vidas, eles já cá não estão e não há ninguém para responder às nossas perguntas.
Bj
Querida Mãe,
Coincidência curiosa: também tenho andado a pensar muito nas histórias que os meus avós me contaram e a querer imenso juntar mais peças do puzzle. Concordo em absoluto, tirando os seus livros (!) nada pode dar mais vida à História, do que ser contada na primeira pessoa. Mas, mãe, cheguei a uma conclusão um bocadinho triste: é que na altura em que os meus avós eram vivos não sentia o mesmo interesse nem pelas árvores genealógicas, nem pela História que as estórias que me contavam transmitiam.
Suspeito que há medida que crescemos e vamos envelhecendo, ficamos a precisar mais dessas ligações, talvez na esperança de que também a nossa vida, a nossa história de vida, passe a uma nova geração, imortalizando-nos no coração daqueles que amamos. Por isso é que adoro o filme Coco, da Pixar. A mãe viu-o ontem com a Martinha, não foi? É tão verdadeira a convicção de que os mortos “desaparecem” se ninguém se lembrar deles!
Voltando as perguntas que tenho por fazer, são tantas, felizmente ainda tenho os meus pais e tios que são exímios guardadores de memórias!
Aliás, dá-me uma ideia: vamos todos aproveitar estes confinamentos para fazer uma investigação ao passado, um álbum de memórias. Mesmo que eles não queiram perguntar, perguntamos nós, pais, porque se formos repositórios dessas recordações, vamos poder — mais tarde — passar-lhas, quando quiserem saber.
Pela minha parte, parece-me que estas deviam ser as primeiras três perguntas:
- Como é que os avós se apaixonaram?
- Trabalharam naquilo que queriam, ou se pudessem teriam sido outra coisa?
- Qual a melhor e a pior memória da infância que guardam?
Que seja o início de uma conversa inesquecível.
Beijinhos!
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram